terça-feira, 29 de agosto de 2017

ADVERTÊNCIA, de Solano Trindade







Há poetas que só fazem versos de amor

Há poetas herméticos e concretistas

enquanto se fabricam

bombas atômicas e de hidrogênio

enquanto se preparam

exércitos para guerra

enquanto a fome estiola os povos...



Depois

eles farão versos de pavor e de remorso

e não escaparão ao castigo

porque a guerra e a fome

também os atingirão

e os poetas cairão no esquecimento...



(Solano Trindade: o poeta do povo, 1999)





(Ilustração: 
René Magritte,  memory, 1948)

sábado, 26 de agosto de 2017

OS DRAGÕES NÃO CONHECEM O PARAÍSO, de Caio Fernando Abreu






Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade.

Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

Isso me pareceu gradiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia.

Estou me confundindo, estou me dispersando.

O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada. 

Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para se transformar numa grande chaga.

Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.

Ainda não comecei.

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.

Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".

Ele gostava tanto dessas palavras que começam com in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.

Ele cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que os espaços ficassem mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.

Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.

Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiura. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.

Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.

Quando volto a pensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.

Nada, nada disso existe.

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:

- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.

Não, isso também não é verdade.



(Os Dragões Não Conhecem o Paraíso, 1988)



(Ilustração: Elaina Wagner - Dragons Of Amethyst Coast)





quarta-feira, 23 de agosto de 2017

CERA DA MANHÃ, de Ronaldo Costa Fernandes







Eis que a mãe

surge pela manhã.

Traz o tempo nas veias.

Sentada e imóvel,

ela é a melhor fotografia

tridimensional de si própria.

Tem medo de que

quem esteja ali sentada

seja inflamável

por ser uma cópia de cera.



A mãe o chama

e se incandesce.

É conversa que se consome

e bruxuleia,

ora pavio lúcido,

ora a cera do esquecimento.

Tem medo de que ela se esqueça

dele e, assim, ceráceo e ardente,

enrijecerá a infância,

serão últimos os primeiros passos

e morrerá vivo na memória

da mãe que o perdeu

dentro de seu labirinto

feito de museu e cera.





(Ilustração: Whistler, James Abbott McNeill, 1834-1903, mother)




domingo, 20 de agosto de 2017

15 CENAS DE DESCOBRIMENTO DO BRASIL, de Fernando Bonassi






Cena 1 HISTÓRIA DAS IDÉIAS Primeiro surgiu o homem nu de cabeça baixa. Deus veio num raio. Então apareceram os bichos que comiam os homens. E se fez o fogo, as especiarias, a roupa, a espada e o dever. Em seguida se criou a filosofia, que explicava como não fazer o que não devia ser feito. Então surgiram os números racionais e a História, organizando os eventos sem sentido. A fome desde sempre, das coisas e das pessoas. Foram inventados o calmante e o estimulante. E alguém apagou a luz. E cada um se vira como pode, arrancando as cascas das feridas que alcança.

Cena 2 TURISMO ECOLÓGICO Os missionários chegaram e cobriram das selvagens o que lhes dava vergonha. Depois as fizeram decorar a Ave Maria. Então lhes ensinaram bons modos, a manter a higiene e lhes arranjaram empregos nos hotéis da floresta, onde se chega de uísque em punho. Haveria uma lógica humanitária exemplar no negócio, não fosse o fato das índias começarem a deitar-se com os hóspedes. Nada faz com que mudem. Seus maridos, chapados demais, não sentem os cornos. De qualquer maneira, todos levam o seu. Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter perdido outra chance.

Cena 3 REFLEXO Juruena está estranhando seu reflexo. Não num espelho específico, mas em qualquer superfície que a devolva. Se pega e se perde em vidraças, balcões de metal, louças... Há mesmo algumas modificações entre a expressão que faz e aquela em que aparece. Dança, pula, esbofeteia o ar... e chega atrasada aos seus próprios gestos. É mais ridículo que preocupante. Só rindo pra se aguentar se fugindo dessa forma. Não está interessada em fazer companhia a si mesma. Diria que é melhor nem encontrar consigo até que uma das duas resolva a diferença.

Cena 4 PLANALTO CENTRAL O nome completo de Wilson é Wilson Patachó, mas isso tá na cara. Entre Paranã e Gurupi todo mundo o conhece como "Índio". Na verdade como "Índio do Posto Shell". Wilson, ou Indio do Posto Shell, também é conhecido por fazer negócio com os caminhoneiros. Tem duas filhas pra oferecer. Pega-se em Paranã e larga-se em Gurupi, ou vice-versa. Uma chama-se Cibele Patachó e a outra Pamela Patachó. Cibele tem todos os dentes. Pamela nenhum e, justamente por isso, é a preferida pra coisa que aqueles homens brancos mais gostam de fazer.

Cena 5 CHACINA Quando os quatro combinaram, o quinto já estava morto, mas ele não sabia e seguiu vivendo. E como tudo o que vive cansa, dormiu. De forma que por isso demorou a abrir a porta quando bateram de madrugada. Correu por correr, porque tudo o que é vivo corre da morte, ainda que seja corrida de sair perdido. O que falava pelos quatro era o que tinham nas mãos, de forma que ninguém disse nada. Tiro foi muito, que vizinhança nunca ouviu. Endureceu embaixo da cama mesmo, naquela posição de quem quisesse morder esse vento que nos entra pela boca bem agora. 

Cena 6 OS SILVÍCOLAS Um índio burro de dar dó! Toda manhã ele aparece no bar e gasta em cerveja tudo o que a sua mulher ganhou durante a noite. Bebe até perder o juízo, passa a tarde urinando e volta pra cobrar o que gastou. Não há meio de fazê-lo entender que, ao encher a cara, usou cada maldito tostão do que era seu (ou da mulher, sei lá...). Que funciona desse modo: coisas passam de uma mão à outra por troços num momento... isto é: aqueles papéis coloridos e bolinhas de metal agora pertencem ao sujeito atrás do balcão. É tão certo em sua burrice que até confunde a gente!

Cena 7 UMA PRAGA Não se iluda. É a mulher mais estragada que você já viu. Também não faz nada pra mudar a situação. Sobra dedo na tua mão se for contar dentes nela. Seca que de lado não se vê. Mancha, vergão e cicatriz nem se distingue da pele pura. A capa leitosa nos olhos foi porcaria que fumou. Põe a foto da revista de sacanagem no vidro e diz quanto é. Nunca mais vai dizer outra coisa nesse dia. Não tem erro. Os olhos. Só pode ser aquele olho de vidro estilhaçado... É que você olha lá dentro, escorrega, se corta inteiro. Cai mesmo, entende? Meu amigo, você não levanta mais! É uma praga.

Cena 8 O TIRADENTES No início dos anos 70, os garimpeiros arrancavam seus próprios dentes. A sangue frio, é claro. De modo que quando Paulão viajou pro norte com uma bolsa cheia de Citanest, teve sucesso imediato. Mesmo quando os veios de ouro secaram, Paulão continuou oferecendo anestesia. Agora seus maiores fregueses são os índios. A maioria nem tem mais dentes pra tirar. Ele ainda vem pra São Paulo e volta com duas ou três malas da coisa (as aplica em troca do pagamento que houver). Pra ele, o caso é que os índios não estão suportando o gosto de sua própria saliva nesses tempos.

Cena 9 CANÇÃO DO EXÍLIO Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos. Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz "tuim" na cabeça da gente. Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura), onde pousam cacos de vidro pra espantar malaco. Minha terra tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada). As sirenes que aqui apitam, apitam de repente e sem hora marcada. Elas não são mais as das fábricas, que fecharam. São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazer tranquilidade e aflição.

Cena 10 PROMESSA Todo santo sábado Mariano leva um pedaço de cera na Igreja de São Judas Tadeu. Leva um braço, reza; leva uma coxa, reza; um peito... e assim por diante. Nos próximos dois meses deve completar o corpo, pondo cabeça por cima e sandálias por baixo de tudo. Nesse dia pensa acender uma vela da mais grossa no tamanho de Jacira, que nunca existiu. Acha que quando pedir pela última vez, essa Jacira sem pulmões vai sair andando, batendo os saltos pelas cerâmicas. Mariano também acha que pode aproveitá-la por um bom tempo até que derreta no sol.

Cena 11 O DIA DAS BRUXAS Eu só vim pra te dizer que todas as coisas que você disse aconteceram. Todas aquelas meias palavras que você usou, tentando "me proteger", ora... elas formaram uma nuvem inteira de desgraça na minha vida. Claro que eu perdi um a um os apoios dos meus cotovelos. Aliás você já sabia. Perdi mesmo a vergonha de vir aqui. Nem sei se você me enganou... Você é das boas! Você e essas cartas encardidas. Vocês valem os malditos 100 paus que eu dei e que agora me fazem falta. Você é uma bruxa miserável de boa. Só vim pra te dizer isso.

Cena 12 BUSINESS HEADLINES As bolsas estão caindo, os aviões estão caindo, os lavadores de vidraça estão caindo. Uma borboleta bate asas em Seul e bibelôs despencam das cômodas em Osasco. Analistas e especuladores enchem os bolsos. Mediterranées não têm vagas até 2003. Por qualquer cinquenta paus se arranja um Saint Laurent de deixar de herança. Na próxima segunda-feira, tudo indica, 1929 será uma piada. Henrique mal fez seu milhão de dólares e já está sendo colhido pela fúria desses elementos. É por isso que massacra seu cartão de crédito contra o pó da mesa enquanto corta custos. 

Cena 13 1964 É mesmo possível que tenha sido um ano maravilhoso, não sei... A Bossa Nova que se pegava no rádio, os filmes ganhando prêmios, a facilidade com que se partilhava um berro e aqueles divórcios devastando gerações... Os marcadores de Garrincha com a espinha quebrada. A simplicidade das capas dos livros e dos desejos das pessoas. É verdade: os militares já vinham com aquelas ideias, mas ainda não tinham feito o pior. Se você diz, é mesmo possível... Eu era muito pequeno e só consigo lembrar que as coisas, quando caíam, faziam um estrondo terrível nos meus ouvidos.

Cena 14 OS BRASILEIROS Dois em cada três brasileiros já fumaram maconha. Três em cada cinco brasileiros acreditam em Deus. Cinco em cada oito brasileiros morderam a hóstia durante a comunhão. Oito em cada treze brasileiros preferem sexo anal. Treze em cada dezessete brasileiros habilitados pensaram em jogar um carro no poste só pra ver o que acontece. Dezessete em cada vinte brasileiros não sabem que o Homem da Terra de Marlboro é um ator. Vinte em cada vinte e dois brasileiros não têm terra. Vinte e dois em cada vinte e três brasileiros têm certeza que seu azar é específico.

Cena 15 O FIM A TV apresenta uma "zona de morte" em torno da Ilha de Marajó. Peixes boiam às toneladas. Búfalos afundam na lama. Pássaros arremessam-se contra postes. Cavalos quebram as pernas. A vegetação ajoelha com a chuva. Carros giram como peões até que as árvores degolem seus ocupantes. Aviões desistem. Revólveres disparam acidentalmente. Cocares suicidam-se num Atlântico onde barcos batem de frente. Há os que procuram um Moisés que lhes empurre. Alguém lembra o fim dos dinossauros. Especialistas estão desorientados que não exista mão humana nessa desgraça.




(Ilustração: Raul Mendez;  forró)




quinta-feira, 17 de agosto de 2017

INVENTÁRIO, de Nina Rizzi





me vestem essas paredes, retalhos de poesia e cinema

que pintam a casa caiada de manchar inquilinos sonhos.



com dedos e sopros vou espanando a areia que murmura

nos talheres e pratos que me deram por conveniência ou despeito.



na rua, ficam me espreitando ali parados alguns postes.

patrulham o amor que exalo e tremo.

sereno, desvairado? que importa.



a fome arde em tudo e talvez seja eu

apenas esse espaço entre oceano e janela







(Ilustração: Livia Valente; o batuque das ondas)




domingo, 13 de agosto de 2017

TUDO QUE PASSA NA CABEÇA ANTES DE UMA NOITE DE AMOR, de Lucas Barroso







A vida é um processo de espera. Às vezes, as coisas simplesmente não acontecem no tempo esperado. Era angustiante aguardar. Teria tempo para? Pensava nisso enquanto refogava a cebola e o alho na manteiga, como orientava a receita. Cebola é a alma da comida, dizia sua mãe, metida a poeta. Quinhentos gramas de camarão. Duas xícaras de arroz arbóreo. Alho-poró. Um cálice de vinho branco seco. Um toque de laranja. Sal e pimenta a gosto. Será que risoto é uma boa escolha? Pelo menos, é prático. Deixou uma fresta na tampa. As panelas ficariam descansando, com o risoto já pronto, enquanto ia ao banheiro se maquiar. 


Fez o contorno dos olhos com cuidado. Batom vermelho, no tom que todo homem gosta. Pernas depiladas. Meia-calça e espartilho pretos. Salto alto – o pé esquerdo, sabe-se lá por que razão, apertou um pouco. Unhas e cílios postiços – será que ele notaria? E se notasse, qual seria sua opinião sobre? Vestido discreto, preto – para combinar com a meia-calça –, curto, mas não demais. A intenção era valorizar sua bunda, redondinha, tamanho que quase cabe na mão de um homem. Sutiã com bojo – outra tática além dos cílios – para preencher o decote. Nas costas, as alças finas e uma abertura até o cóccix davam luz a sua pele limpa, lisa, apenas com algumas pintinhas, sem protuberância alguma. 


Todo esse esforço, essa apresentação, óbvio, era para valorizar aquele momento, demonstrar a reverência que a noite merecia. Sabia que não passava de artimanha, estratagema, clichê, entretanto, queria agradar. Tudo que as pessoas fazem é para agradar as outras. Essa era outra lição de sua mãe. Os homens gostam de se sentir especiais, sabia muito bem disso. A ocasião era propícia para ressaltar e mostrar explicitamente sua intenção: não queria só sexo. 


Gostava dele. Nunca estiveram a sós como ficariam hoje. Quando se beijaram, foi no trabalho, onde eram colegas. A partir disso, desencadearam-se diversos eventos que resultaram nessa noite. Eis a razão da tensão, pois havia ali, naquele apartamento de uma pessoa só, uma ânsia em ver tudo dando certo. Pouco importava o fato dele ser casado, com filhos – e qual será a desculpa que um homem casado e com filhos inventa para conseguir uma noite fora de casa? Futebol? Trabalho? Amigos? Não sabia, nem imaginava ao certo. O problema era dele, pensou. Também pensou o que essa noite traria como consequências para o futuro de ambos. Fim do casamento? Seriam somente amantes? Uma noite apenas? E no trabalho, não se falariam mais? Tinha o jantar, a casa e outros afazeres importantes para aquela noite que careciam de atenção. Era melhor parar com os devaneios tolos. 


Seu telefone tocou. Era ele avisando que estava em um táxi. Dentro de alguns minutos, poderia descer para recebê-lo. A resposta, porém, foi negativa, pois estragaria a surpresa – toda a preparação, o vestido. O porteiro estava avisado. Bastava anunciar o nome e acessar o elevador. Segundo ele, aquilo estava errado, o porteiro poderia desconfiar. Porém, os dois concordaram que era uma bobagem. Afinal, qual era o problema em receber um amigo para jantar? É a coisa mais normal do mundo, falou. Mesmo assim, ele tentou retomar seu discurso estranho, dizendo que as pessoas não são trouxas, mas, enfim, tudo bem.


Ao desligar, a ânsia havia se transformado em um nervosismo absurdo, que tomava conta da situação. Já não se sentia mais confortável com as atitudes que tomou. Todo aquele clima e ambiente queriam dizer exatamente o quê? Não sabia a resposta. Não sabia e isso lhe afligia. Correu ao espelho. E a principal dúvida veio: por que, afinal, se vestiu de mulher? Se fora beijado como homem, por que se fantasiou para o principal momento? O principal motivo foi ter ouvido dele que seu rosto tinha traços femininos e que isso o atraía. Essa foi a razão, segundo seu colega de trabalho que estava a poucos instantes de entrar naquele apartamento, que o fez beijar um homem pela primeira vez em sua vida – agora, em um momento de serenidade, refletiu e teve dúvida se seria verdade ou algum tipo de mentira que homens casados atraídos por outros homens sempre contam. De qualquer forma, foi baseado nisso que resolveu se vestir de mulher, assumindo então seus traços. Acreditou que o baque seria menor. Entretanto, já não tinha certeza se a decisão foi correta, porque a surpresa poderia ser um risco. E se não o agradasse? Teria como consertar tudo e receber uma segunda chance? O sapato lhe apertava. Sentou no sofá. Retirou o pé esquerdo que o estava incomodando. O alívio de estar descalço – o pé vestido com a meia-calça ao tocar o laminado trazia uma sensação muito agradável – lhe fez esquecer um pouco de tudo. Até que a campainha tocou. Não conseguiu se erguer do sofá. O toque se repetiu mais duas vezes. Respirou fundo. Calçou outra vez os sapatos e foi até a porta atender o homem que tanto esperava.




(Um silêncio avassalador)




(Ilustração: René Magritte - the lovers)



sexta-feira, 11 de agosto de 2017

INFERNOS I, de Gil Jorge







o que não você sim me diz na sua suada língua de verdades na minha cara na minha boca de contradições e desconverso em sentido contrário em insinuações como beijá-la e deixá-la nua vazia e calma fazê-la esquecer o que você não e eu sim simulo um acordo frágil entre nossos nomes em nome de um deus inventado na hora da nossa morte amém sim eu digo sim uma comunhão de bens e malas a fazer numa impensada concordância de senões até um porto mais próximo mas trata-se de um aborto de um parto de um pacto sem conjecturas de juras profanadas estupros estúpidos escrúpulos terminais e óbvios contratos de retardo latente trata-se de alcançar com sua língua as minhas amígdalas de me amordaçar e presente fugir para um ponto neutro de abstração em que os olhos veem um significado absurdo de silêncio concentrado e impenetrável digamos impermeável de propostas impróprias e você sim sem a menor dúvida grita seu pulmão seu hálito de “bourbon” e me implora de joelhos ah como eu rezava por isso por esta cinta liga por esta putaria religiosa de sim/não ordinário cretino canalha desgraçado filho da puta ridículo a mandíbula travada de quem cheirou todas te amarro te rasgo e você pede pra eu te comer te lamber me foda me morda e sinto o momento exato em que você deságua seminua semininfa semiputa te como te chupo te como te fodo te bato na cara na bunda e você perde o tesão para sim instantes segundos depois pedir mais e como se estivesse em carne viva engole todo o meu pau a minha porra as minhas cordas vocais estouram e iniciam uma hemorragia que vai à ferrugem uma dopamina que vai ao tétano eu amordaçado você amarrada desmaios múltiplos impuros como devem ser e nós sim sinistros sob as minhas barbas e eu imberbe e você sim cínica irônica descarada sem beijos ou bises me castiga me deixa ao onanismo e ri e rindo se delicia com a minha punheta depravada desesperada e dolorida com meu priapismo perpétuo mas não suporta o meu não gutural e narcótica lambe o meu períneo e entra numa vertigem vaginal de correntes por corredores estreitos por pés direitos altos saltos de sapatos finos e você sim condenada à síntese exerce o autoexorcismo e animicida animal perde-se totalmente de Virgílio eu não te perdoo mas te salvo da castidade perene à qual você quer se impor te trago ao sim simétrico da copulação doentia e sã blasfemo e digo talvezes diversas vezes quantas desnecessárias são e os nervos levados à fervura e ali petrificados pigmaleão a sua secreção sobre meu ventre enfio meu pau em sua angina (sobre) você nua de ver dentro endríaco e omófago como tua buceta e definitivamente te digo sim com todos os sintomas da besta do anticristo do antissanto e humano levo o amor a sua perfeição íntima e última e te transformo em um anjo carnal sem asas decretos e culpas ao sexo único e tantos sim tanato. fobia.





(Ilustração: Kris Kuski The-Plague)








terça-feira, 8 de agosto de 2017

CARTA AOS BRASILEIROS, de Goffredo Telles Júnior




 (Goffredo Silva Teles by Pedro Martinelli /Veja)


Das Arcadas do Largo de São Francisco, do “Território Livre” da Academia de Direito de São Paulo, dirigimos, a todos os brasileiros esta Mensagem de Aniversário, que é a Proclamação de Princípios de nossas convicções políticas.



Na qualidade de herdeiros do patrimônio recebido de nossos maiores, ao ensejo do Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil, queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade.



Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos Direitos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras.



Nossa fidelidade de hoje aos princípios basilares da Democracia é a mesma que sempre existiu à sombra das Arcadas: fidelidade indefectível e operante, que escreveu as Páginas da Liberdade, na História do Brasil.



Estamos certos de que esta Carta exprime o pensamento comum de nossa imensa e poderosa Família - da Família formada, durante um século e meio, na Academia do Largo de São Francisco, na Faculdade de Direito de Olinda e Recife, e nas outras grandes Faculdades de Direito do Brasil - Família indestrutível, espalhada por todos os rincões da Pátria, e da qual já saíram, na vigência de Constituições democráticas, dezessete Presidentes da República. 



1. O Legal e o Legítimo



Deixemos de lado o que não é essencial.



O que aqui diremos não tem a pretensão de constituir novidade. Para evitar interpretações errôneas, nem sequer nos vamos referir a certas conquistas sociais do mundo moderno. Deliberadamente, nada mais diremos do que aquilo que, de uma ou outra maneira, vem sendo ensinado, ano após ano, nos cursos normais das Faculdades de Direito. E não transporemos os limites do campo científico de nossa competência.



Partimos de uma distinção necessária. Distinguimos entre o legal e o legítimo.



Toda lei é legal, obviamente. Mas nem toda lei é legítima. Sustentamos que só é legítima a lei provinda de fonte legítima.



Das leis, a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo ao qual elas interessam - comunidade e Povo em cujo seio as ideias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida.



Os dados sociais, as contingências históricas da coletividade, as contradições entre o dever teórico e o comportamento efetivo, a média das aspirações e das repulsas populares, os anseios dominantes do Povo, tudo isto, em conjunto, é que constitui o manancial de onde brotam normas espontâneas de convivência, originais intentos de ordenação, às vezes usos e costumes, que irão inspirar a obra do legislador.



Das forças mesológicas, dos fatores reais, imperantes na comunidade, é que emerge a alma dos mandamentos que o legislador, na forja parlamentar, modela em termos de leis legítimas.



A fonte legítima secundária das leis é o próprio legislador, ou o conjunto dos legisladores de que se compõem os órgãos legislativos do Estado. Mas o legislador e os órgãos legislativos somente são fontes legítimas das leis enquanto forem representantes autorizados da comunidade, vozes oficiais do Povo, que é a fonte primária das leis.



O único outorgante de poderes legislativos é o Povo. Somente o Povo tem competência para escolher seus representantes. Somente os Representantes do Povo são legisladores legítimos.



A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna, por ele também elaborada, e que é a Constituição.



Consideramos ilegítimas as leis não nascidas do seio da coletividade, não confeccionadas em conformidade com os processos prefixados pelos Representantes do Povo, mas baixadas de cima, como carga descida na ponta de um cabo.



Afirmamos, portanto, que há uma ordem jurídica legítima e uma ordem jurídica ilegítima. A ordem imposta, vinda de cima para baixo, é ordem ilegítima. Ela é ilegítima porque, antes de mais nada, ilegítima é a sua origem. Somente é legítima a ordem que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do Povo.



Imposta, a ordem é violência. Às vezes, em certos momentos de convulsão social, apresenta-se como remédio de urgência. Mas, em regra, é medicação que não pode ser usada por tempo dilatado, porque acaba acarretando males piores do que os causados pela doença.



2. A Ordem, o Poder e a Força



Estamos convictos de que há um senso leviano e um senso grave da ordem.



O senso leviano da ordem é o dos que se supõem imbuídos da ciência do bem e do mal, conhecedores predestinados do que deve e do que não deve ser feito, proprietários absolutos da verdade, ditadores soberanos do comportamento humano.



O senso grave da ordem é o dos que abraçam os projetos resultantes do entrechoque livre das opiniões, das lutas fecundas entre ideias e tendências, nas quais nenhuma autoridade se sobrepõe às Leis e ao Direito.



Ninguém se iluda. A ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes. A fonte genuína da ordem não é a Força, mas o Poder.



O Poder, a que nos referimos, não é o Poder da Força, mas um Poder de persuasão.



Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos de organização social, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores.



O Governo, com o senso grave da ordem, é um Governo cheio de Poder. Sua legitimidade reside no prestígio popular de quase todos os seus projetos. Sua autoridade se apoia no consenso da maioria.



Nisto é que está a razão da obediência voluntária do Povo aos Governos legítimos.



Denunciamos como ilegítimo todo Governo fundado na Força. Legítimo somente o é o Governo que for órgão do Poder.



Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder.



A nós nos repugna a teoria de que o Poder não é mais do que a Força. Para nossa consciência jurídica, o Poder é produto do consenso popular e a Força um mero instrumento do Governo.



Não negamos a utilidade de tal instrumento. Mas o que afirmamos é que a Força é somente útil na qualidade de meio, para assegurar o respeito pela ordem jurídica vigente e não para subvertê-la ou para impor reformas na Constituição.



A Força é um meio de que se utiliza o Governo fiel aos projetos do Povo. Desgraçadamente, também a utiliza o Governo infiel. O Governo fiel a utiliza a serviço do Poder. O Governo infiel, a serviço do arbítrio.



Reconhecemos que o Chefe do Governo é o mais alto funcionário nos quadros administrativos da Nação. Mas negamos que ele seja o mais alto Poder de um País. Acima dele, reina o Poder de uma Ideia: reina o Poder das convicções que inspiram as linhas mestras da Política nacional. Reina o senso grave da Ordem, que se acha definido na Constituição.



3. A Soberania da Constituição



Proclamamos a soberania da Constituição.



Sustentamos que nenhum ato legislativo pode ser tido como lei superior à Constituição.



Uma lei só é válida se a sua elaboração obedeceu aos preceitos constitucionais, que regulam o processo legislativo. Ela só é válida se, em seu mérito, suas disposições não se opõem ao pensamento da Constituição.



Aliás, uma lei inconstitucional é lei precária e efêmera, porque só é lei enquanto sua inconstitucionalidade não for declarada pelo Poder Judiciário. Ela não é propriamente lei, mas apenas uma camuflagem da lei. No conflito entre ela e a Constituição, o que cumpre, propriamente, não é fazer prevalecer a Constituição, mas é dar pela nulidade da lei inconstitucional. Embora não seja razoável considerá-la inexistente, uma vez que a lei existe como objeto do julgamento que a declara inconstitucional, ela não tem, em verdade, a dignidade de uma verdadeira lei.



Queremos consignar aqui um simples mas fundamental princípio. Da conformidade de todas as leis com o espírito e a letra da Constituição dependem a unidade e coerência do sistema jurídico nacional.



Observamos que a Constituição também é uma lei. Mas é a Lei Magna. O que, antes de tudo, a distingue nitidamente das outras leis é que sua elaboração e seu mérito não se submetem a disposições de nenhuma lei superior a ela. Aliás, não podemos admitir como legítima lei nenhuma que lhe seja superior. Entretanto, sendo lei, a Constituição há de ter, também, sua fonte legítima.



Afirmamos que a fonte legítima da Constituição é o Povo.



4. O Poder Constituinte



Costuma-se dizer que a Constituição é obra do Poder. Sim, a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente.



Ao Povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica em que deseja viver.



Assim como a validade das leis depende de sua conformação com os preceitos da Constituição, a legitimidade da Constituição se avalia pela sua adequação às realidades socioculturais da comunidade para a qual ela é feita.



Disto é que decorre a competência da própria comunidade para decidir sobre o seu regime político; sobre a estrutura de seu Governo e os campos de competência dos órgãos principais de que o Governo se compõe; sobre os processos de designação de seus governantes e legisladores.



Disto, também, é que decorre a competência do Povo para fazer a Declaração dos Direitos Humanos fundamentais, assim como para instituir os meios que os assegurem.



Em consequência, sustentamos que somente o Povo, por meio de seus Representantes, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte , ou por meio de uma Revolução vitoriosa, tem competência para elaborar a Constituição; que somente o Povo tem competência para substituir a Constituição vigente por outra, nos casos em que isto se faz necessário.



Sustentamos, igualmente, que só o Povo, por meio de seus Representantes no Parlamento Nacional, tem competência para emendar a Constituição.



E sustentamos, ainda, que as emendas na Constituição não se podem fazer como se fazem as alterações na legislação ordinária. Na Constituição, as emendas somente se efetuam, quando apresentadas, processadas e aprovadas em conformidade com preceitos especiais, que a própria Constituição há de enunciar, preceitos estes que têm por fim conferir à Lei Magna do Povo uma estabilidade maior do que a das outras leis.



Declaramos ilegítima a Constituição outorgada por autoridade que não seja a Assembleia Nacional Constituinte, com a única exceção daquela que é imediatamente imposta por meio de uma Revolução vitoriosa, realizada com a direta participação do Povo.



Declaramos ilegítimas as emendas na Constituição que não forem feitas pelo Parlamento, com obediência, no encaminhamento, na sua votação e promulgação, a todas as formalidades do rito, que a própria Carta Magna prefixa, em disposições expressas.



Não nos podemos furtar ao dever de advertir que o exercício do Poder Constituinte, por autoridade que não seja o Povo, configura, em qualquer Estado democrático, a prática de usurpação de poder político.



Negamos peremptoriamente a possibilidade de coexistência, num mesmo País, de duas ordens constitucionais legítimas, embora diferentes uma da outra. Se uma ordem é legítima, por ser obra da Assembleia Constituinte do Povo, nenhuma outra ordem, provinda de outra autoridade, pode ser legítima.



Se, ao Poder Executivo fosse facultado reformar a Constituição, ou submetê-la a uma legislação discricionária, a Constituição perderia, precisamente, seu caráter constitucional e passaria a ser um farrapo de papel.



A um farrapo de papel se reduziria o documento solene, em que a Nação delimita a competência dos órgãos do Governo, para resguardar, zelosamente, de intromissões cerceadoras dos poderes públicos, o campo de atuação da liberdade humana.



5. O Estado de Direito e o Estado de Fato



Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional.



O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à Constituição.



Bem simples é este princípio, mas luminoso, porque se ergue, como barreira providencial, contra o arbítrio de vetustos e renitentes absolutismos. A ele as instituições políticas das Nações somente chegaram após um longo e acidentado percurso na História da Civilização. Sem exagero, pode dizer-se que a consagração desse princípio representa uma das mais altas conquistas da cultura, na área da Política e da Ciência do Estado.



O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica.



É obediente ao Direito, porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque, ao exercê-las, o Governo não ultrapassa os limites de sua competência.



É guardião dos Direitos, porque o Estado de Direito é o Estado-Meio, organizado para servir o ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das pessoas.



E é aberto para as conquistas da cultura jurídica, porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita.



Os outros Estados, os Estados não constitucionais, são os Estados cujo Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte. São os Estados cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e que acabam por não respeitar fronteiras para sua competência. São os Estados cujo Governo não tolera crítica e não permite contestação. São os Estados-Fim, com Governos obcecados por sua própria segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade. São Estados opressores, que muitas vezes se caracterizam por seus sistemas de repressão, erguidos contra as livres manifestações da cultura e contra o emprego normal dos meios de defesa dos direitos da personalidade.



Esses Estados se chamam Estados de Fato. Os otimistas lhes dão o nome de Estados de Exceção. Na verdade, são Estados Autoritários, que facilmente descambam para a Ditadura.



Ilegítimos, evidentemente, são tais Estados, porque seu Poder Executivo viola o princípio soberano da obediência dos Governos à Constituição e às leis.



Ilegítimos, em verdade, porque seus Governos não têm Poder, não têm o Poder Legítimo, que definimos no início desta Carta.



Destituídos de Poder Legítimo, os Estados de Fato duram enquanto puderem contar com o apoio de suas forças armadas.



Sustentamos que os Estados de Fato, ou Estados de Exceção, são sistemas subversivos, inimigos da ordem legítima, promotores da violência contra Direitos Subjetivos, porque são Estados contrários ao Estado Constitucional, que é o Estado de Direito, o Estado da Ordem Jurídica.



Nos países adiantados, em que a cultura política já organizou o Estado de Direito, a insólita implantação do Estado de Fato ou de Exceção - do Estado em que o Presidente da República volta a ser o monarca lege solutus - constitui um violento retrocesso no caminho da cultura.



Uma vez reimplantado o Estado de Fato, a Força torna a governar, destronando o Poder. Então, bens supremos do espírito humano, somente alcançados após árdua caminhada da inteligência, em séculos de História, são simplesmente ignorados. Os valores mais altos da Justiça, os direitos mais sagrados dos homens, os processos mais elementares de defesa do que é de cada um, são vilipendiados, ridicularizados e até ignorados, como se nunca tivessem existido.



O que os Estados de Fato, Estados Policiais, Estados de Exceção, Sistemas de Força apregoam é que há Direitos que devem ser suprimidos ou cerceados, para tornar possível a consecução dos ideais desses próprios Estados e Sistemas.



Por exemplo, em lugar dos Direitos Humanos, a que se refere a Declaração Universal das Nações Unidas, aprovada em 1948; em lugar do habeas corpus; em lugar do direito dos cidadãos de eleger seus governantes, esses Estados e Sistemas colocam, frequentemente, o que chamam de Segurança Nacional e Desenvolvimento Econômico.



Com as tenebrosas experiências dos Estados Totalitários europeus, nos quais o lema é, e sempre foi, Segurança e Desenvolvimento, aprendemos uma dura lição. Aprendemos que a Ditadura é o regime, por excelência, da Segurança Nacional e do Desenvolvimento Econômico. O Nazismo, por exemplo, tinha por meta o binômio Segurança e Desenvolvimento. Nele ainda se inspira a ditadura soviética.



Aprendemos definitivamente que, fora do Estado de Direito, o referido binômio pode não passar de uma cilada. Fora do Estado de Direito, a Segurança, com seus órgãos de terror, é o caminho da tortura e do aviltamento humano; e o Desenvolvimento, com o malabarismo de seus cálculos, a preparação para o descalabro econômico, para a miséria e a ruína.



Não nos deixaremos seduzir pelo canto das sereias de quaisquer Estados de Fato, que apregoam a necessidade de Segurança e Desenvolvimento, com o objetivo de conferir legitimidade a seus atos de Força, violadores frequentes da Ordem Constitucional.



Afirmamos que o binômio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar uma Ditadura numa Democracia, um Estado de Fato num Estado de Direito.



Declaramos falsa a vulgar afirmação de que o Estado de Direito e a Democracia são “a sobremesa do desenvolvimento econômico”. O que temos verificado, com frequência, é que desenvolvimentos econômicos se fazem nas mais hediondas ditaduras.



Nenhum País deve esperar por seu desenvolvimento econômico, para depois implantar o Estado de Direito. Advertimos que os Sistemas, nos Estados de Fato, ficarão permanentemente à espera de um maior desenvolvimento econômico, para nunca implantar o Estado de Direito.



Proclamamos que o Estado de Direito é sempre primeiro, porque primeiro estão os direitos e a segurança da pessoa humana. Nenhuma ideia de Segurança Nacional e de Desenvolvimento Econômico prepondera sobre a ideia de que o Estado existe para servir o homem.



Estamos convictos de que a segurança dos direitos da pessoa humana é a primeira providência para garantir o verdadeiro desenvolvimento de uma Nação.



Nós queremos segurança e desenvolvimento. Mas queremos segurança e desenvolvimento dentro do Estado de Direito.



Em meio da treva cultural dos Estados de Fato, a chama acesa da consciência jurídica não cessa de reconhecer que não existem, para Estado nenhum, ideais mais altos do que os da Liberdade e da Justiça.



6. A Sociedade Civil e o Governo



O que dá sentido ao desenvolvimento nacional, o que confere legitimidade às reformas sociais, o que dá autenticidade às renovações do Direito, são as livres manifestações do Povo, em seus órgãos de classe, nos diversos ambientes da vida.



Quem deve propulsionar o desenvolvimento é o Povo organizado, mas livre, porque ele é que tem competência, mais do que ninguém, para defender seus interesses e seus direitos.



Sustentamos que uma Nação desenvolvida é uma Nação que pode manifestar e fazer sentir a sua vontade. É uma Nação com organização popular, com sindicatos autônomos, com centros de debate, com partidos autênticos, com veículos de livre informação. É uma Nação em que o Povo escolhe seus dirigentes, e tem meios de introduzir sua vontade nas deliberações governamentais. É uma Nação em que se acham abertos os amplos e francos canais de comunicação entre a Sociedade Civil e o Governo.



Nos Estados de Fato, esses canais são cortados. Os Governos se encerram em Sistemas fechados, nos quais se instalam os “donos do Poder”. Esses “donos do Poder” não são, em verdade, donos do Poder Legítimo: são donos da Força. O que chamam de Poder não é o Poder oriundo do Povo.



A órbita da política não vai além da área palaciana, reduto aureolado de mistério, hermeticamente trancado para a Sociedade Civil.



Nos Estados de Fato, a Sociedade Civil é banida da vida política da Nação. Pelos chefes do Sistema, a Sociedade Civil é tratada como um confuso conglomerado de ineptos, sem discernimento e sem critério, aventureiros e aproveitadores, incapazes para a vida pública, destituídos de senso moral e de idealismo cívico. Uma multidão de ovelhas negras, que precisa ser continuamente contida e sempre tangida pela inteligência soberana do sábio tutor da Nação.



Nesses Estados, o Poder Executivo, por meio de atos arbitrários, declara a incapacidade da Sociedade Civil, e decreta a sua interdição.



Proclamamos a ilegitimidade de todo sistema político em que fendas ou abismos se abrem entre a Sociedade Civil e o Governo.



Chamamos de Ditadura o regime em que o Governo está separado da Sociedade Civil. Ditadura é o regime em que a Sociedade Civil não elege seus Governantes e não participa do Governo. Ditadura é o regime em que o Governo governa sem o Povo. Ditadura é o regime em que o Poder não vem do Povo. Ditadura é o regime que castiga seus adversários e proíbe a contestação das razões em que ela se procura fundar.



Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós.



Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia.



Os governantes que dão o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão. Nós saberemos que eles estarão atirando, sobre os ombros do povo, um manto de irrisão.



7. Os Valores Soberanos do Homem, Dentro do Estado de Direito



Neste preciso momento histórico, reassume extraordinária importância a verificação de um fato cósmico. Até o advento do Homem no Universo, a evolução era simples mudança na organização física dos seres. Com o surgimento do Homem, a evolução passou a ser, também, um movimento da consciência.



Seja-nos permitido insistir num truísmo: a evolução do homem é a evolução de sua consciência; e a evolução da consciência é a evolução da cultura.



A nossa tese é a de que o homem se aperfeiçoa à medida que incorpora valores morais ao seu patrimônio espiritual. Sustentamos que os Estados somente progridem, somente se aprimoram, quando tendem a satisfazer ansiedades do coração humano, assegurando a fruição de valores espirituais, de que a importância da vida individual depende.



Sustentamos que um Estado será tanto mais evoluído quanto mais a ordem reinante consagre e garanta o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livremente pelos Representantes do Povo, numa Assembleia Nacional Constituinte; o direito de não ver ninguém jamais submetido a disposições de atos legislativos do Poder Executivo, contrários aos preceitos e ao espírito dessa Constituição; o direito de ter um Governo em que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário possam cumprir sua missão com independência, sem medo de represálias e castigos do Poder Executivo; o direito de ter um Poder Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana, elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte; o direito de escolher, em pleitos democráticos, seus governantes e legisladores; o direito de ser eleito governante ou legislador, e o de ocupar cargos na administração pública; o direito de se fazer ouvir pelos Poderes Públicos, e de introduzir seu pensamento nas decisões do Governo; o direito à liberdade justa, que é o direito de fazer ou de não fazer o que a lei não proíbe; o direito à igualdade perante a lei que é o direito de cada um de receber o que a cada um pertence; o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio; o direito à propriedade e o de conservá-la; o direito de organizar livremente sindicatos de trabalhadores, para que estes possam lutar em defesa de seus interesses; o direito à presunção de inocência, dos que não forem declarados culpados, em processo regular; o direito de imediata e ampla defesa dos que forem acusados de ter praticado ato ilícito; o direito de não ser preso, fora dos casos previstos em lei; o direito de não ser mantido preso, em regime de incomunicabilidade, fora dos casos da lei; o direito de não ser condenado a nenhuma pena que a lei não haja cominado antes do delito; o direito de nunca ser submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante; o direito de pedir a manifestação do Poder Judiciário, sempre que houver interesse legítimo de alguém; o direito irrestrito de impetrar habeas corpus; o direito de ter Juízes e Tribunais independentes, com prerrogativas que os tornem refratários a injunções de qualquer ordem; o direito de ter uma imprensa livre; o direito de fruir das obras de arte e cultura, sem cortes ou restrições; o direito de exprimir o pensamento, sem qualquer censura, ressalvadas as penas legalmente previstas, para os crimes de calúnia, difamação e injúria; o direito de resposta; o direito de reunião e associação.



Tais direitos são valores soberanos. São ideais que inspiram as ordenações jurídicas das nações verdadeiramente civilizadas. São princípios informadores do Estado de Direito.



Fiquemos apenas com o essencial.



O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito.



A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já.





(São Paulo / SP: Arcadas do Largo de São Francisco; 8 de agosto de 1977)