domingo, 20 de agosto de 2017

15 CENAS DE DESCOBRIMENTO DO BRASIL, de Fernando Bonassi






Cena 1 HISTÓRIA DAS IDÉIAS Primeiro surgiu o homem nu de cabeça baixa. Deus veio num raio. Então apareceram os bichos que comiam os homens. E se fez o fogo, as especiarias, a roupa, a espada e o dever. Em seguida se criou a filosofia, que explicava como não fazer o que não devia ser feito. Então surgiram os números racionais e a História, organizando os eventos sem sentido. A fome desde sempre, das coisas e das pessoas. Foram inventados o calmante e o estimulante. E alguém apagou a luz. E cada um se vira como pode, arrancando as cascas das feridas que alcança.

Cena 2 TURISMO ECOLÓGICO Os missionários chegaram e cobriram das selvagens o que lhes dava vergonha. Depois as fizeram decorar a Ave Maria. Então lhes ensinaram bons modos, a manter a higiene e lhes arranjaram empregos nos hotéis da floresta, onde se chega de uísque em punho. Haveria uma lógica humanitária exemplar no negócio, não fosse o fato das índias começarem a deitar-se com os hóspedes. Nada faz com que mudem. Seus maridos, chapados demais, não sentem os cornos. De qualquer maneira, todos levam o seu. Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter perdido outra chance.

Cena 3 REFLEXO Juruena está estranhando seu reflexo. Não num espelho específico, mas em qualquer superfície que a devolva. Se pega e se perde em vidraças, balcões de metal, louças... Há mesmo algumas modificações entre a expressão que faz e aquela em que aparece. Dança, pula, esbofeteia o ar... e chega atrasada aos seus próprios gestos. É mais ridículo que preocupante. Só rindo pra se aguentar se fugindo dessa forma. Não está interessada em fazer companhia a si mesma. Diria que é melhor nem encontrar consigo até que uma das duas resolva a diferença.

Cena 4 PLANALTO CENTRAL O nome completo de Wilson é Wilson Patachó, mas isso tá na cara. Entre Paranã e Gurupi todo mundo o conhece como "Índio". Na verdade como "Índio do Posto Shell". Wilson, ou Indio do Posto Shell, também é conhecido por fazer negócio com os caminhoneiros. Tem duas filhas pra oferecer. Pega-se em Paranã e larga-se em Gurupi, ou vice-versa. Uma chama-se Cibele Patachó e a outra Pamela Patachó. Cibele tem todos os dentes. Pamela nenhum e, justamente por isso, é a preferida pra coisa que aqueles homens brancos mais gostam de fazer.

Cena 5 CHACINA Quando os quatro combinaram, o quinto já estava morto, mas ele não sabia e seguiu vivendo. E como tudo o que vive cansa, dormiu. De forma que por isso demorou a abrir a porta quando bateram de madrugada. Correu por correr, porque tudo o que é vivo corre da morte, ainda que seja corrida de sair perdido. O que falava pelos quatro era o que tinham nas mãos, de forma que ninguém disse nada. Tiro foi muito, que vizinhança nunca ouviu. Endureceu embaixo da cama mesmo, naquela posição de quem quisesse morder esse vento que nos entra pela boca bem agora. 

Cena 6 OS SILVÍCOLAS Um índio burro de dar dó! Toda manhã ele aparece no bar e gasta em cerveja tudo o que a sua mulher ganhou durante a noite. Bebe até perder o juízo, passa a tarde urinando e volta pra cobrar o que gastou. Não há meio de fazê-lo entender que, ao encher a cara, usou cada maldito tostão do que era seu (ou da mulher, sei lá...). Que funciona desse modo: coisas passam de uma mão à outra por troços num momento... isto é: aqueles papéis coloridos e bolinhas de metal agora pertencem ao sujeito atrás do balcão. É tão certo em sua burrice que até confunde a gente!

Cena 7 UMA PRAGA Não se iluda. É a mulher mais estragada que você já viu. Também não faz nada pra mudar a situação. Sobra dedo na tua mão se for contar dentes nela. Seca que de lado não se vê. Mancha, vergão e cicatriz nem se distingue da pele pura. A capa leitosa nos olhos foi porcaria que fumou. Põe a foto da revista de sacanagem no vidro e diz quanto é. Nunca mais vai dizer outra coisa nesse dia. Não tem erro. Os olhos. Só pode ser aquele olho de vidro estilhaçado... É que você olha lá dentro, escorrega, se corta inteiro. Cai mesmo, entende? Meu amigo, você não levanta mais! É uma praga.

Cena 8 O TIRADENTES No início dos anos 70, os garimpeiros arrancavam seus próprios dentes. A sangue frio, é claro. De modo que quando Paulão viajou pro norte com uma bolsa cheia de Citanest, teve sucesso imediato. Mesmo quando os veios de ouro secaram, Paulão continuou oferecendo anestesia. Agora seus maiores fregueses são os índios. A maioria nem tem mais dentes pra tirar. Ele ainda vem pra São Paulo e volta com duas ou três malas da coisa (as aplica em troca do pagamento que houver). Pra ele, o caso é que os índios não estão suportando o gosto de sua própria saliva nesses tempos.

Cena 9 CANÇÃO DO EXÍLIO Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos. Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz "tuim" na cabeça da gente. Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura), onde pousam cacos de vidro pra espantar malaco. Minha terra tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada). As sirenes que aqui apitam, apitam de repente e sem hora marcada. Elas não são mais as das fábricas, que fecharam. São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazer tranquilidade e aflição.

Cena 10 PROMESSA Todo santo sábado Mariano leva um pedaço de cera na Igreja de São Judas Tadeu. Leva um braço, reza; leva uma coxa, reza; um peito... e assim por diante. Nos próximos dois meses deve completar o corpo, pondo cabeça por cima e sandálias por baixo de tudo. Nesse dia pensa acender uma vela da mais grossa no tamanho de Jacira, que nunca existiu. Acha que quando pedir pela última vez, essa Jacira sem pulmões vai sair andando, batendo os saltos pelas cerâmicas. Mariano também acha que pode aproveitá-la por um bom tempo até que derreta no sol.

Cena 11 O DIA DAS BRUXAS Eu só vim pra te dizer que todas as coisas que você disse aconteceram. Todas aquelas meias palavras que você usou, tentando "me proteger", ora... elas formaram uma nuvem inteira de desgraça na minha vida. Claro que eu perdi um a um os apoios dos meus cotovelos. Aliás você já sabia. Perdi mesmo a vergonha de vir aqui. Nem sei se você me enganou... Você é das boas! Você e essas cartas encardidas. Vocês valem os malditos 100 paus que eu dei e que agora me fazem falta. Você é uma bruxa miserável de boa. Só vim pra te dizer isso.

Cena 12 BUSINESS HEADLINES As bolsas estão caindo, os aviões estão caindo, os lavadores de vidraça estão caindo. Uma borboleta bate asas em Seul e bibelôs despencam das cômodas em Osasco. Analistas e especuladores enchem os bolsos. Mediterranées não têm vagas até 2003. Por qualquer cinquenta paus se arranja um Saint Laurent de deixar de herança. Na próxima segunda-feira, tudo indica, 1929 será uma piada. Henrique mal fez seu milhão de dólares e já está sendo colhido pela fúria desses elementos. É por isso que massacra seu cartão de crédito contra o pó da mesa enquanto corta custos. 

Cena 13 1964 É mesmo possível que tenha sido um ano maravilhoso, não sei... A Bossa Nova que se pegava no rádio, os filmes ganhando prêmios, a facilidade com que se partilhava um berro e aqueles divórcios devastando gerações... Os marcadores de Garrincha com a espinha quebrada. A simplicidade das capas dos livros e dos desejos das pessoas. É verdade: os militares já vinham com aquelas ideias, mas ainda não tinham feito o pior. Se você diz, é mesmo possível... Eu era muito pequeno e só consigo lembrar que as coisas, quando caíam, faziam um estrondo terrível nos meus ouvidos.

Cena 14 OS BRASILEIROS Dois em cada três brasileiros já fumaram maconha. Três em cada cinco brasileiros acreditam em Deus. Cinco em cada oito brasileiros morderam a hóstia durante a comunhão. Oito em cada treze brasileiros preferem sexo anal. Treze em cada dezessete brasileiros habilitados pensaram em jogar um carro no poste só pra ver o que acontece. Dezessete em cada vinte brasileiros não sabem que o Homem da Terra de Marlboro é um ator. Vinte em cada vinte e dois brasileiros não têm terra. Vinte e dois em cada vinte e três brasileiros têm certeza que seu azar é específico.

Cena 15 O FIM A TV apresenta uma "zona de morte" em torno da Ilha de Marajó. Peixes boiam às toneladas. Búfalos afundam na lama. Pássaros arremessam-se contra postes. Cavalos quebram as pernas. A vegetação ajoelha com a chuva. Carros giram como peões até que as árvores degolem seus ocupantes. Aviões desistem. Revólveres disparam acidentalmente. Cocares suicidam-se num Atlântico onde barcos batem de frente. Há os que procuram um Moisés que lhes empurre. Alguém lembra o fim dos dinossauros. Especialistas estão desorientados que não exista mão humana nessa desgraça.




(Ilustração: Raul Mendez;  forró)




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