sábado, 29 de dezembro de 2018

GRITO NEGRO, de José Craveirinha






Eu sou carvão!

E tu arrancas-me brutalmente do chão

e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!

E tu acendes-me, patrão,

para te servir eternamente como força motriz

mas eternamente não, patrão.

Eu sou carvão

e tenho que arder sim;

queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão;

tenho que arder na exploração

arder até às cinzas da maldição

arder vivo como alcatrão, meu irmão,

até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão.

Tenho que arder

Queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!

Eu sou o teu carvão, patrão.





(Ilustração: James Ensor - autorretrato com máscaras, 1889)



quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

GALINHA CEGA, João Alphonsus





NA MANHÃ SADIA, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo: 

— Frangos BONS E BARATOS! 

Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. 

Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe. 

— Psiu! 

Foi o cavalo que ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. Um bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme. 

— Quanto? ...Tanto. 

Mas puseram-se a discutir exaustivamente os preços. Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador brusco. 

— Olhe esta franguinha branca. Então não vale? Está gordota... E que bonitos olhos ela tem. Pretotes... Vá lá! 

O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava: 

— Frangos BONS E BARATOS! 

Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão. 

— Olha, Inácia, o que eu comprei. 

A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas. Permaneceu calada. 

— Olha os olhos. Pretotes... 

— É. 

— Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha. 

— É. 

No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as penas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava divertidíssimo. 

A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta. 

A franga não notou grande diferença entre a sua vida atual e a que levava em seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe para um galinheiro sobre rodas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro todo se agitava, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas. Um fogo de artifício como nunca vira. Aliás ela nunca tinha visto um fogo de artifício. Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna... Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome. 

Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal. Possuía o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante, com plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha... Sujeito cacete. 

O galo — có, có, có — có, có, có — rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo. 

— A melhor galinha, Inácia! Boa à beça! 

— Não sei por quê. 

— Você sempre besta! Pois eu sei... 

— Besta! besta, hein? 

— Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto da galinha e fica me amolando. 

— Besta é você! 

— Eu sei que eu sou. 

Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansaram em suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A branquinha — era o nome que o dono lhe botara — bicava o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago de milho e repetia o golpe, repetia com desespero, até catar um grão que nem sempre era aquele que visava. O dono correu atrás de sua branquinha, agarrou-a, lhe examinou os olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientada. Atirou ainda mais, com paciência, até que ela se fartasse. Mas não conseguiu com o gasto de milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria aquilo, meu Deus do céu. Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai... Nem por sombra imaginou que era a cegueira irremediável que principiava. 

Também a galinha, coitada, não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras? Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que já não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra. 

Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. Era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda no poleiro. Ali se anularia, quietinha, se finando quase sem sofrimento, porquanto a admirável clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido. 

Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o com o bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam. Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! Para depois cantar. As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão. 

— A coitada está cega, Inácia! Cega! 

— É. 

Nos olhos raiados de sangue do carroceiro (ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas enormes. 

Religiosamente, pela manhãzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, de violentas, faziam doer a palma da mão calosa. E ele sorria. Depois a conduzia ao poço, onde ela bebia com os pés dentro da água. A sensação direta da água nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre apenas o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia, assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto do poço. Aquela água era como uma bênção para ele. Como a água benta, com que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele. Impressão, aliás, algo confusa, sem requintes psicológicos e sem literatura. Depois de satisfeita a sede, ele a colocava no pequeno cercado de tela separado do terreiro (as outras galinhas martirizavam muito a branquinha) que construíra especialmente para ela. De tardinha dava-lhe outra vez milho e água, e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado. Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia de comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido. 

Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delidas lembranças da claridade sumida. No terreiro plano ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame, e abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário. Ainda tinha liberdade — o pouco de liberdade necessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas. E não sentir mais o galo perturbá-la com o seu có-có-có malicioso. O ingrato. 

Em determinadas tardes, na ternura crescente do parati, ele pegava a galinha, após dar-lhe comida e bebida, se sentava na porta do terreiro e começava a niná-la com a voz branda, comovida: 

— Coitadinha da minha ceguinha! 

— Tadinha da ceguinha... 

Depois, já de noite, ia botá-la no poleiro solitário. 

De repente os acontecimentos se precipitaram. 

— Entra! — Centra! 

A meninada ria a maldade atávica no gozo do futebol originalíssimo. A galinha se abandonava sem protesto na sua treva à mercê dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não chutavam com tanta força como a uma bola, mas chutavam, e gozavam a brincadeira. 

O carroceiro não quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola. O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta. — Você chicoteou o filho do delegado. Vamos à delegacia. Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta. Rubro de raiva impotente. Foi quase que correndo para casa. 

— Onde está a galinha, Inácia? 

— Vai ver. 

Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue... Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor. 

— Não fui eu não! Com certeza um gambá! 

— Você não viu? 

— Não acordei! Não pude acordar! 

Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando: — Me acudam! 

Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá. Todo gambá é paud’água. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. De-va-gari-nho. GOSTOSAMENTE. 

De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas 20 horas o sono chegou. Cansado da insônia no xadrez, ele não resistiu. Mas acordou justamente na hora precisa, necessária. A porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente. 

Foi se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhadas rápidas o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes, e começou a rir: — Kiss! kiss! kiss! 

(Se o gambá fosse inglês com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era. No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas por exemplo. Bêbado.) 

O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece os surtos de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizado: 

— Vai embora, seu tratante! 

O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. Se sentia imensamente feliz o bichinho e começou a cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura humana: 

A lua como um balão balança! 

A lua como um balão balança! 

A lua como um... 

E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.  



(Ilustração: Elżbieta Goszczycka - blind hen and grain)


domingo, 23 de dezembro de 2018

NO PAU-DE-ARARA, de Armando Freitas Filho









No pau-de-arara

                        é proibido gozar

mesmo quando enrabado

por muitos

                        e o espasmo

sacuda o curto-circuito

do corpo

fudido em verde-amarelo

                        sob o som

das botas, das patas

dos saltos altos

da Pátria em marcha

das famílias caindo de quatro

                        ao som

de Dom e Ravel

de Deus

                        salve a América!

Eu te amo meu Brasil

eu
                        só ouço vômito

e as aves

que aqui gorjeiam

                        etc.



(Longa Vida)


(Ilustraçao: Fernando Botero - Abughraib)



quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

UM PRÍNCIPE NEGRO NAS RUAS DO RIO, de Eduardo Silva (*)





Dom Obá 2º d'África, ou melhor, Cândido da Fonseca Galvão, como foi batizado, nasceu na Vila dos Lençóis, no sertão da Bahia, por volta de 1845. 

Filho de africanos forros, brasileiro de primeira geração, era, ao mesmo tempo, por direito de sangue, príncipe africano, neto, ao que tudo indica, do poderoso Aláàfin Abiodun, o último soberano a manter unido o grande império de Oyo na segunda metade do século 18. 

Príncipe guerreiro, Dom Obá (que quer dizer "rei" em ioruba) lutou na Guerra do Paraguai (1865-70), de onde saiu oficial honorário do Exército brasileiro, por bravura. De volta ao país, fixou residência no Rio, onde sua posição social era, no mínimo, complexa. Tido pela sociedade de bem como um homem meio amalucado, uma figura folclórica, era, ao mesmo tempo, reverenciado como um príncipe real por escravos, libertos e homens livres de cor. 

Amigo pessoal, uma espécie de protegido de Dom Pedro 2º, Dom Obá assumiu, nos momentos decisivos do processo de abolição progressiva, o papel histórico, até então insuspeito, de elo entre as altas esferas do poder imperial e as massas populares que emergiam das relações escravistas. 

Sua figura imponente de homem de 2m de altura, seus modos de soberano, como que captavam a atenção dos contemporâneos, embora poucos estivessem realmente preparados para acreditar no que viam. Um príncipe afro-baiano a perambular pelas ruas do velho Rio, barba à moda de Henrique 4º, muito bem vestido em suas "finas roupas pretas", como foi descrito, de fraque, cartola, luvas brancas, guarda-chuva, bengala e pince-nez de aro de ouro. 

Ou, em ocasiões mais especiais, muito ereto e importante em seu bem preservado uniforme de alferes do Exército, com seus galões e dragonas douradas, sua espada à cinta, seu chapéu armado com penachos coloridos, seu "pacholismo admirável". 

Dom Obá, para ser breve, defendeu uma visão alternativa da sociedade e do próprio processo histórico brasileiro. Talvez pelo conteúdo mesmo de suas ideias, talvez por sua linguagem crioula, colorida com expressivas pitadas de ioruba e mesmo latim, a verdade é que seu discurso parecia opaco, incompreensível para a elite letrada de então. 

Escravos, libertos e homens livres de cor, contudo, não apenas compartilhavam suas ideias, como contribuíam financeiramente para a publicação das mesmas e reuniam-se "nas quitandas ou em família" para ler os artigos. 

O que defendia este homem e por que parecia interessar tanto seus leitores? Sendo um príncipe, era Dom Obá, ao menos teoricamente, um monarquista acima dos partidos, nem inteiramente conservador nem liberal, talvez por achá-los muito parecidos uns com os outros, inspirados apenas por interesses materiais e casuísticos. 

Por essas e outras, tinha o príncipe posições políticas muito bem matizadas. "Por isso sou conservador para conservar o que for bom e liberal para reprimir os assassinatos que têm havido nesta atualidade a mando de certos potentosos", quer dizer, potentados, pessoas muito influentes e poderosas. 

O combate ao racismo, a defesa da igualdade fundamental entre os homens, foi um dos pontos mais importantes do pensamento e da prática, explicava, "por Deus mandar que quando o varão tiver valor não se olharia a cor". Contrariava não apenas concepções senhoriais, contrariava a própria ciência fin de siècle com suas poderosas filosofias evolucionistas e etnocêntricas. 

A miscigenação brasileira, para o príncipe, nada tinha a ver com ideias evolucionistas de inevitabilidade, como pensou Nina Rodrigues; ou desejabilidade, como pensou Silvio Romero, do "branqueamento". Tinha a ver, ao contrário, com um sentimento de igualdade fundamental entre os homens. O príncipe orgulhava-se de "preto ser" e, por não acreditar em superioridades, era "amigo dos Brancos e (de) todos os varões sensatos conhecedores (...) que o valor não está na cor". 

Saída do mesmo universo cultural, uma carta de apoio ao príncipe lembra o absurdo da discriminação, "visto da preta cor ser assemelhada todas as mais raças". 

Outra carta, em 1887, chega a formular um projeto de "enegrecimento", antes que de "embranquecimento" da nação. Para o missivista, súdito de Dom Obá, a raça negra já não era o problema, mas a própria solução. Por isso apoiava a nomeação do príncipe como embaixador plenipotenciário na África ocidental, onde prestaria relevantes serviços, "mandando transportar colonos africanos, para nunca mais sofrer o Brasil decadência na sua exportação de fumo e café (...) e o açúcar e o algodão nunca deixem de fertilizar o solo onde nascera o mesmo Príncipe Obá 2º d'África, de Abiodon neto". Também aqui a discriminação é tida por absurda, sendo, afinal, "cada qual como Deus o fez". 

O próprio príncipe publica, vez por outra, poesia abolicionista e antidiscriminatória. "Não é defeito preto ser a cor/ É triste pela inveja roubar-se o valor", reza uma delas. Para ele, "o certo é que o Brasil deve desistir (da) questão da cor, pois que a questão é de valor e quando o varão tiver valor não se olhará a cor". 

Na verdade, para Dom Obá, não parece existir exatamente uma "questão racial", mas uma questão de cultura, de informação, de refinamento social. Daí, muitas vezes, o seu desconsolo com a pátria amada, "um país tão novo onde completamente não reina a severa civilização colimada, porque ainda há quem apure a tolice (...) do preconceito de cor". 

O príncipe, como seus seguidores, chega a formulações pioneiras também no sentido da criação de uma estética autônoma, na linha do black is beautiful norte-americano dos anos 60. Na verdade, segundo um de seus súditos, a raça negra não apenas era linda, era "superior do que os mais finos brilhantes". 

Às vezes parece existir, no fundo, a ideia de superioridade negra. Não no sentido biológico ou intelectual, parece, mas no sentido moral, em função da vivência histórica de diáspora. Sua "humilde cor preta" era, assim, "cada qual como Deus e Maria Santíssima, virgem, sempre virgem sem ser pesada aos cofres públicos, sem ser assassina da humanidade". Tudo isso, concluía, "por preta ser a cor invejada". 




(*) EDUARDO SILVA é chefe do setor de história da Fundação Casa de Rui Barbosa e autor de "Prince of the People - The Life and Times of a Brazilian Free Man of Colour", editora Verso (Londres) 




(Ilustração: Belmiro de Almeida, 1886, Dom Obá II)



segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O BURACO DO ESPELHO, de Arnaldo Antunes






o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar aqui

com um olho aberto, outro acordado

no lado de lá onde eu caí



pro lado de cá não tem acesso

mesmo que me chamem pelo nome

mesmo que admitam meu regresso

toda vez que eu vou a porta some



a janela some na parede

a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve



já tentei dormir a noite inteira

quatro, cinco, seis da madrugada

vou ficar ali nessa cadeira

uma orelha alerta, outra ligada



o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar agora

fui pelo abandono abandonado

aqui dentro do lado de fora




(Ilustração: Dino Valls)




sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

O FUNERAL DE UM GUERREIRO, de Chinua Achebe



Go-di-di-go-go-di-go. Di-go-go-di-go. Era o batuque do ekwe falando à tribo. Uma das coisas que todo homem aprendia era a linguagem desse instrumento de madeira. Buum! Buum! Buum! — estrondava o canhão a intervalos regulares. 

Ainda não se ouvira o primeiro cantar do galo e Umuófia continuava envolta em sono e silêncio quando o ekwe começou a falar e o canhão despedaçou a calma reinante. Todos se agitaram em suas camas de bambu e se puseram à escuta, ansiosos. Alguém tinha morrido. Os tiros de canhão pareciam romper o céu. O di-go-go-di-go-di-di-go-go flutuava no ar da noite, impregnado de mensagens. Um indistinto e longínquo gemido de mulheres assentava-se sobre a terra como um depósito de dor. De vez em quando, um lamento a plenos pulmões sobrepunha-se a esses gemidos sempre que um homem chegava ao local da morte. O recém-chegado emitia seu lamento uma ou duas vezes, numa manifestação viril de dor, e em seguida sentava-se junto aos outros homens, a escutar os intermináveis gemidos das mulheres e a esotérica linguagem do ekwe. 

Vez por outra, o canhão ribombava. As lamentações das mulheres não poderiam ser ouvidas para além daquele vilarejo, mas o ekwe ia levando as notícias até as outras nove aldeias, e mais longe ainda. A fala do tambor começava pelo nome da tribo: Umuófia obodo dike, “a terra dos bravos”. Umuófia obodo dike! Repetia-se essa frase muitas e muitas vezes, e a insistência era tanta, que a ansiedade começou a crescer no coração de todos aqueles que, pouco antes, tinham estado ressonando tranquilamente numa cama de bambu. Depois, o batuque ficou ainda mais preciso e mencionou o nome da aldeia: Iguedo, a da pedra de moagem amarela! Era a aldeia de Okonkwo. O nome Iguedo foi sendo repetido sem cessar, enquanto nas nove aldeias aumentava em todos a inquieta expectativa. Finalmente, mencionou-se o nome do morto e o povo suspirou: — E-u-u, Ezeudu morreu. — Um calafrio baixou pela espinha de Okonkwo, quando se lembrou da última vez em que o velho Ezeudu o visitara. 

— Aquele menino o considera como pai — dissera o velho. — Não seja cúmplice de sua morte. 

Ezeudu fora um grande homem, por isso a tribo inteira compareceu ao funeral. Os antigos tambores da morte soavam, davam-se tiros de espingarda e canhão, e os homens corriam de um lado para outro, numa espécie de frenesi, decepando todas as árvores e matando todos os animais que encontravam, saltando muros e dançando sobre os tetos. Era o funeral de um guerreiro; e, da manhã à noite, outros guerreiros foram chegando, de acordo com os grupos de idade. Todos eles usavam saiotes de ráfia enfumaçados e seus corpos estavam pintados de giz e de carvão. De vez em quando, um espírito ancestral, ou egwuwu, surgia de outro mundo, falando numa voz trêmula e extraterrena, completamente recoberto por uma roupagem de ráfia. Alguns desses espíritos eram muito violentos, e já tinha havido, nas primeiras horas do dia, uma correria doida em busca de abrigo quando um deles aparecera empunhando um afiado facão; e somente graças à ajuda de dois homens que conseguiram sujeitá-lo, amarrando-lhe uma grossa corda em volta da cintura, o egwuwu fora impedido de causar sérios danos. Houve momentos em que ele se virara e correra, perseguindo os dois, que trataram de fugir para salvar a pele; mas eles logo voltaram e tornaram a segurar a ponta da corda que o espírito arrastava atrás de si. Este cantava, com uma voz apavorante, dizendo que Ekwensu, ou Espírito Maligno, tinha entrado em seu olho. 

O mais temível dos espíritos, contudo, ainda não aparecera. Vinha sempre sozinho e sua forma era a de um caixão de defunto. Um fedor enjoativo o acompanhava, e as moscas o seguiam. Até mesmo os maiores curandeiros escondiam-se de medo quando ele andava por perto. Há muitos anos, outro egwuwu se atrevera a desafiá-lo e lhe fizera frente: ficara imobilizado, durante dois dias, no mesmo lugar. Este egwuwu tinha apenas uma mão e nela carregava uma cesta* cheia d’água. 

Alguns desses egwuwus eram de todo inofensivos. Um deles já estava tão velho e doente que vinha caminhando apoiado num cajado. Dirigiu-se, vacilante, ao lugar onde jazia o cadáver, contemplou-o durante alguns instantes e foi-se embora de novo — para o outro mundo. 

Na realidade, não existia uma distância muito grande entre a terra dos vivos e o domínio dos ancestrais. Havia sempre idas e vindas entre os dois mundos, especialmente durante os festivais e quando um homem idoso morria, porque os velhos estão muito próximos dos ancestrais. A vida de um homem, desde o nascimento até a morte, era uma série de ritos de transição que o aproximavam cada vez mais de seus antepassados. 

Ezeudu fora o homem mais velho de sua aldeia e, ao falecer, havia apenas três homens mais idosos do que ele em toda a tribo, e mais uns quatro ou cinco de seu grupo etário. Todas as vezes que um desses anciãos aparecia no meio do povo para executar, com gestos trêmulos, os passos da dança fúnebre da tribo, os homens mais jovens abriam-lhe espaço e o tumulto diminuía um pouco. 

Era um grande funeral esse, digno de um nobre guerreiro. Ao entardecer, aumentaram a gritaria, os tiros, o batuque dos tambores e o clangor dos facões. 

Ezeudu recebera três títulos durante a vida. Isso era um feito raro, pois havia apenas quatro títulos no clã, e somente um ou dois homens, em todas as gerações, tinham conseguido alcançar o quarto, que era o mais elevado. Quando isso acontecia, tornavam-se senhores da terra. Ezeudu, justamente porque recebera títulos, seria enterrado após o anoitecer, à luz de um único tição aceso, que iluminaria a cerimônia sagrada. 

Antes, porém, desse tranquilo rito final, o tumulto decuplicou. Os tambores batiam violentamente e os homens pulavam, num verdadeiro frenesi. Tiros explodiam de todos os lados e faíscas voavam dos facões ao se entrechocarem, estrepitosamente, na saudação dos guerreiros. O ar estava cheio de poeira e cheirava a pólvora. Foi nesse momento que o espírito maneta apareceu, carregando a cesta cheia d’água. O povo abriu-lhe espaço e o barulho diminuiu. Até mesmo o cheiro de pólvora foi absorvido pelo fedor pestilento que agora enchia o ar. Ele executou alguns passos da dança fúnebre ao som dos tambores e em seguida foi ver o cadáver. 

— Ezeudu! — chamou, com voz gutural. — Se tivesses sido pobre na tua vida passada, eu te pediria que fosses rico quando de novo voltasses. Mas foste rico. Se tivesses sido um covarde, eu te pediria que retornasses corajoso. Mas foste um destemido guerreiro. Se tivesses morrido jovem, eu te pediria que obtivesses mais vida. Mas viveste muito. Por tudo isso, eu te pedirei que tornes a voltar como antes vieste. Se tua morte foi natural, vai em paz. Mas se foi causada por um homem, não permitas a esse homem um só momento de sossego. 

E, assim falando, deu mais alguns passos de dança e foi-se embora. 

Os tambores e a dança recomeçaram, atingindo um ritmo febril. A escuridão estava a ponto de chegar e a hora do enterro se aproximava. Tiros explodiram numa última saudação e o canhão tornou a fender o céu. Nesse instante, em meio àquela fúria delirante, ouviu-se um grito de agonia e brados de horror. E então foi como se um feitiço tivesse sido lançado. Tudo se fez silêncio. No centro da multidão, um garoto jazia numa poça de sangue. Era o filho de Ezeudu, de dezesseis anos, que, juntamente com seus irmãos e meios-irmãos, participava, momentos antes, da tradicional dança de adeus em homenagem ao pai morto. A arma de Okonkwo explodira e um pedaço de ferro trespassara o coração do menino. 

A confusão que se seguiu não encontrava paralelo na história de Umuófia. 

Mortes violentas eram frequentes ali, mas nunca acontecera nada semelhante. 

Para Okonkwo só havia uma opção: fugir do clã, pois matar um de seus membros era um crime contra a deusa da terra, e aquele que o cometesse via-se obrigado a abandonar a região. O crime podia ser de dois tipos, masculino ou feminino. O que Okonkwo cometera era feminino, porque fora por acaso. Por isso, passados sete anos, ele poderia retornar ao clã. 

Naquela mesma noite, começou a reunir seus mais valiosos pertences em trouxas que pudessem ser carregadas na cabeça. Suas mulheres choravam amargamente e os filhos também choravam com elas, sem saberem o porquê. Obierika e mais uma meia dúzia de amigos vieram ajudar e consolar Okonkwo. Cada um deles fez umas nove ou dez viagens, carregando os inhames do amigo até o celeiro de Obierika, onde ficariam armazenados. E assim, antes do cantar do galo, toda a família fugiu para a terra natal de Okonkwo, que era uma aldeia pequenina, chamada Mbanta, pouco além dos limites de Mbaino. 

Logo que o dia amanheceu, um grande número de homens da família de Ezeudu, em roupagens de guerra, invadiu tempestuosamente o compound [1] de Okonkwo. Atearam fogo às casas, demoliram os muros vermelhos, mataram os animais e destruíram o celeiro. Era a justiça da deusa da terra. Aqueles homens atuavam apenas como mensageiros da deusa. Seus corações não abrigavam nenhum ódio contra Okonkwo, cujo melhor amigo, Obierika, fazia parte do grupo. Estavam simplesmente limpando a terra que Okonkwo poluíra com o sangue de um membro do clã. 

Obierika era um homem que costumava refletir sobre as coisas. Após a vontade da deusa da terra ter sido cumprida, sentou-se em seu obi [2] e pôs-se a lamentar a desgraça do amigo. Por que alguém deveria passar por tamanho sofrimento por causa de uma ofensa cometida inadvertidamente? Porém, embora pensasse longo tempo sobre isso, não encontrou resposta. Tais pensamentos o levaram a refletir sobre problemas ainda mais complexos. Lembrou-se dos filhos gêmeos que sua mulher tivera e que ele jogara no mato. Que crime eles tinham cometido? A terra decretava que os gêmeos constituíam uma ofensa ao mundo e que precisavam ser destruídos. E se, por acaso, a tribo não punisse rigorosamente qualquer ultraje à poderosa deusa, sua ira cairia sobre toda a região, e não apenas sobre o ofensor, pois, como diziam os anciãos, se um dedo estiver sujo de óleo, manchará os demais. 



* Na Ibolândia, costuma-se recobrir completamente as cabaças com palha tecida à semelhança de cestos, a fim de melhor resguardar a água do calor. (N. T.) 



[1] Compound: conjunto de habitações onde mora uma família, geralmente cercado ou murado. 

[2] Obi: a casa do homem num compound, distinta da morada de suas esposas. 



(O mundo se despedaça; tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva) 



(Ilustração: Uche Okeke -1933)




terça-feira, 11 de dezembro de 2018

POEMA DEITADO, de Dheyne de Souza





Estes versos seguem tua respiração

tropeçada

Abotoa teu cheiro nas pregas da minha carne vesga

cai em meus seios

Teus suores pingam meus

múltiplos arpejos trêmulos

afagos leigos

Teu corpo líquido entre nossas bacias

lençóis crispados

Meus dedos correndo tua

pele labareda em

naufrágio teus poros

pintados a carvão tuas

chamas adentro Poema

deitado no perfil dos

meus olhos vapores

cercados traçados

dispersos imensidões de

desejo teu rosto um

orvalho um sonho em ato

em meus dedos.

Eu sonho com teus beijos faiscando meus

pulsos E corro os olhos pelas valas de um

tempo exangue e penetro com tanta

violência teu olhar que cacos banham teu

ombro enquanto meus dedos forjam tuas

dores e o medo de amor titubeia.

Reproduzo tantas vezes teus olhos que

já não sei qual deles pousam meu corpo

nino o desejo por todos, e o calor destes

versos quebrados em teu gozo.



(Pequenos mundos caóticos)



(Ilustração: Daniel Blot - Le soir)







sábado, 8 de dezembro de 2018

PUTOIS, de Anatole France






A Georg Brandes 





CAPÍTULO I 



Aquele jardim da nossa infância – disse o Sr. Bergeret – aquele jardim que a gente percorria todo em vinte passos, foi para nós um mundo imenso, cheio de sorrisos e de assombros. 

– Luciano, lembras–te de Putois? – perguntou Zoé sorrindo à sua maneira, com os lábios cerrados e onariz sobre o trabalho de agulha. 

– Se me lembro de Putois!... De todas as figuras que me passaram diante dos olhos quando eu era menino,a de Putois é a que se manteve mais viva na minha lembrança. Tenho presentes à memória todos os traços da sua fisionomia e do seu caráter. Ele tinha o crânio pontudo... 

– A fronte baixa – acrescentou a Srta. Zoé. 

E o irmão e a irmã puseram–se a receitar, alternadamente, em voz monótona, com uma gravidade extra– vagante, os artigos de uma espécie de identificação: 

– A fronte baixa. 

– Os olhos garços. 

– O olhar fugidio. 

– Um pé–de–galinha nas fontes. 

– As maçãs salientes, vermelhas e brilhantes. 

– As orelhas não tinham dobras. 

– Os traços do rosto eram desprovidos de qualquer expressão. 

– Só as mãos, sempre a se moverem, traíam–lhe o pensamento. 

– Magro, um tanto arqueado, aparentemente débil... 

– Era, na realidade, de uma força fora do comum. 

– Dobrava facilmente uma moeda de cem soldos entre o indicador e o polegar... 

– Que era enorme. 

– Tinha a voz arrastada... 

– E a palavra melosa. 

De súbito o Sr. Bergeret exclamou vivamente: 

– Zoé! esquecemos "os cabelos amarelos e o pêlo ralo". Recomecemos. 

Paulina, que escutara com surpresa essa estranha recitação, perguntou ao pai e à tia como haviam eles conseguido decorar aquele trecho de prosa, e porque o recitavam como ladainha. 

O Sr. Bergeret respondeu gravemente: 

– Paulina, o que acabas de, ouvir é um texto consagrado, direi até litúrgico, para uso da família Bergeret. 

É bom que ele te seja transmitido, a fim de que não pereça comigo e tua tia. Teu avô, minha filha, teu avô Elói Bergeret, que ninguém conseguia divertir com tolices, estimava esse trecho, principalmente em razão de sua origem. Intitulou–o: "A Anatomia de Putois". E costumava dizer que preferia, sob certos aspectos, a anatomia de Putois à anatomia de Quaresmeprenant. 

"Se a descrição feita por Xenômanes – dizia ele – é mais sábia e mais rica em termos raros e preciosos, a descrição de Putois leva–lhe grande vantagem pela clareza das idéias e limpidez do estilo." Ele fazia esse julgamento porque o Dr. Ledouble, de Tours, ainda não explicara os capítulos trinta, trinta e um e trinta e dois do quarto livro de Rabelais. 

– Não compreendo bem – disse Paulina. 

– É porque não conheces Putois, minha filha. Deves saber que Putois foi a figura familiar à minha infância e à de tua tia Zoé. Em casa de teu avô Bergeret falava–se continuamente de Putois. Cada um, por sua vez, acreditava vê–lo. 

Paulina indagou: 

– Quem era Putois? 

Em lugar de responder, o Sr. Bergeret começou a rir, e a Srta. Bergeret também riu, de lábios cerrados. 

Paulina movia o olhar de um para outro. Achava estranho que a tia risse com tanto gosto, e ainda mais estranho que ela risse de acordo e em simpatia com o irmão. Era, realmente, singular, pois irmão e irmã não possuíam a mesma feição de espírito. 

– Papai, diga–me quem era Putois. Já que deseja que eu o saiba, diga–me. 

– Putois, minha filha, era jardineiro. Filho de respeitáveis agricultores artesianos, estabeleceu–se comuma pepineira em Santo Omer. Porém não agradou à sua clientela e fez maus negócios. Tendo deixado esse meio de vida, vivia de ganhos diários. Aqueles que lhe davam trabalho nem sempre tiveram motivo de satisfação com ele. 

A estas palavras, a Srta. Bergeret, ainda a rir: 

– Deves–te recordar, Luciano: quando nosso pai não encontrava em sua secretária a tinta, as penas, olacre, a tesoura, dizia: – "Desconfio que Putois passou por aqui." – Ah! – disse o Sr. Bergeret – Putois não tinha boa reputação. 

– É só isso? – perguntou Paulina. 

– Não, minha filha, não é só isso. Putois teve uma coisa de notável: era–nos conhecido, familiar, e, noentanto... 

– ... não existia – concluiu Zoé. 

O Sr. Bergeret fitou a irmã com ar de censura: 

– Que palavra, Zoé! E para que romper assim o encanto? Putois não existia... Atreves–te a dizê–lo, Zoé?Zoé, serias capaz de prová–lo? Para afirmar que Putois não existiu, que nunca houve Putois, consideraste bem as condições da existência e os modos do ser? Putois existia, minha irmã. Mas é certo que era de uma existência particular. 

– Cada vez compreendo menos – declarou Paulina, desanimada. 

– A verdade te surgirá claramente agora mesmo, minha filha. Fica sabendo que Putois nasceu já de idademadura. Eu ainda era menino, tua tia já mocinha. Habitávamos uma casinha num subúrbio de Santo Omer. 

Ali nossos pais levavam uma vida retirada e tranqüila, até que foram descobertos por uma velha dama de Santo Omer, a Sr.ª Cornouiller, que vivia em sua quinta de Monplaisir, a cinco léguas da cidade, e que se verificou ser tia–avó de minha mãe. Usava desse direito de parentesco para exigir que papai e mamãe fossem todos os domingos jantar em Monplaisir, onde se entediavam a valer. Dizia ser de boa praxe jantar em família aos domingos e que só as pessoas mal–nascidas não observavam esse uso antigo. Meu pai chorava de tédio em Monplaisir. Dava pena ver–lhe o desespero. Mas a Sr.ª Cornouiller não o via. Ela não via nada. Minha mãe se mostrava mais corajosa. Sofria tanto quanto meu pai, talvez mais, e no entanto sorria. 

– As mulheres nasceram para sofrer – observou Zoé. 

– Zoé, tudo o que vive no mundo está destinado ao sofrimento. Em vão nossos pais recusavam essesfunestos convites. A carruagem da Sr.ª Cornouiller vinha buscá–los todos os domingos, pela tarde. Tinha– se de ir a Monplaisir. Uma obrigação à qual era absolutamente proibido escapar. Uma ordem estabelecida, que só a re–volta podia transgredir. Meu pai terminou revoltando–se, e jurou não aceitar mais um convite, sequer, da Sr.ª Cornouiller, deixando a mamãe o cuidado de encontrar para essas recusas pretextos decentes e razões variadas, coisa de que ninguém era menos capaz do que ela. Nossa mãe não sabia fingir. 

– Dize antes, Luciano, que ela não queria. Ela poderia mentir como as outras. 

– O certo é que, quando tinha boas razões, preferia dá–Ias a inventar razões más. Lembras–te de que umdia lhe aconteceu dizer, à mesa: – "Felizmente Zoé está de coqueluche: passaremos muito tempo sem ir a Monplaisir." 

– E era verdade! – exclamou Zoé. 

– Tu saraste, Zoé. E a Sr.ª Cornouiller disse um dia a nossa mãe: 

"Minha queridinha, espero que venha domingo com seu marido jantar em Monplaisir." Nossa mãe, expressamente encarregada pelo esposo de apresentar à Sr.ª Cornouiller um razoável motivo de escusa, imaginou, em tais apuros, uma razão que não era verdadeira: – "Sinto muito, minha cara senhora. Mas será impossível. Domingo eu espero o jardineiro." 

"Ouvindo isto, a Sr.ª Cornouiller olhou, pela janela do salão, o jardinzinho inculto, onde os evônimos e os lilases davam a impressão perfeita de desconhecer a podadeira e continuar a desconhecê–la pelo resto da vida: – "Espera o jardineiro! Para quê?" – "Para trabalhar no jardim.” 

"E minha mãe, tendo voltado involuntariamente os olhos para aquele quadrilátero de ervas nativas e plantas meio agrestes, a que ela acabava de chamar jardim, reconheceu, espantada, a inverossimilhança da sua invenção. – "Esse homem – disse a Sr.ª Cornouiller –poderá muito bem vir trabalhar em seu... jardim, segunda ou terça–feira. Aliás, será melhor. Não se deve trabalhar nos domingos." – "Mas durante a semana ele está ocupado.” 

"Tenho observado freqüentemente que as razões mais absurdas e mais extravagantemente ridículas são as menos combatidas: elas desconcertam o adversário. A Sr.ª Cornouiller insistiu, porém menos do que seria de esperar de pessoa tão pouco disposta a desistir de tinia opinião. Erguendo–se de sua poltrona, perguntou: "Como se chama o seu jardineiro, minha filhinha?" "Putois" – respondeu mamãe sem hesitar. 

"Putois estava batizado. Desde então ele passou a existir. A Sra. Cornouiller foi–se embora rosnando: "Putois... Esse nome não me parece estranho. Putois? Putois! Conheço–o muito bem. Mas não me recordo... Onde mora ele?" – "Ele vive de ganhos. Quando a gente precisa dele, manda–lhe recado a uma casa, a outra..." – "Ah! eu bem que estava pensando: um indolente, um vagabundo... um pobre–diabo. Desconfie dele, minha filhinha.” 

Daí por diante, Putois tinha um caráter.” 



CAPÍTULO II 



Havendo chegado os Srs. Goubin e João Marteau, o Sr. Bergeret tratou de pô–los a par da conservação: 

– Falávamos daquele que um dia minha mãe fez nascer jardineiro em Santo Omer, e a quem deu nome.Desde então ele atuou. 

– Caro mestre, poderia repetir? – pediu o Sr. Goubin limpando o vidro do seu lornhom. 

– Com muito gosto – respondeu o Sr. Bergeret. Não havia jardineiro. O jardineiro não existia. Minha mãedisse: –"Espero o jardineiro." E logo o jardineiro existiu. E atuou. 

– Caro mestre – perguntou o Sr. Goubin – como é que ele atuou, se não existia? 

– Ele tinha uma espécie de existência – respondeu o Sr. Bergeret. 

– O senhor quer dizer uma existência imaginária –replicou desdenhoso o Sr. Goubin. 

– Então não é nada uma existência imaginária? bradou o mestre. – E as personagens míticas não sãocapazes de atuar sobre os homens? Reflita acerca da mitologia, Sr. Goubin, e verá que são, não seres reais, porém seres imaginários, os que exercem sobre as almas a ação mais profunda e mais duradoura. Por toda parte e em todos os tempos, seres que não têm mais realidade que Putois inspiraram aos povos o ódio e o amor, o terror e a esperança, aconselharam crimes, receberam oferendas, fizeram os costumes e as leis. Sr. Goubin, reflita sobre a eterna mitologia. Putois é uma personagem mítica – das mais obscuras, concordo, e da mais baixa espécie. O grosseiro sátiro, sentado outrora à mesa de nosso camponeses do Norte, foi julgado digno de figurar num quadro de Jordaens e numa fábula de La Fontaine. O peludo filho de Sycorax penetrou no mundo sublime de Shakespeare. Putois, menos feliz, será sempre desprezado pelos artistas e pelos poetas. Falta–lhe a grandeza e a extravagância, o estilo e o caráter. Nasceu de espíritos muito racionais, entre pessoas que sabiam ler e escrever e não possuíam essa imaginação encantadora que semeia as fábulas. Julgo, senhores, haver dito o bastante para fazer–lhes conhecer a verdadeira natureza de Putois. 

– Eu a concebo – disse o Sr. Goubin. 

E o Sr. Bergeret continuou: 

– Putois era. Posso afirmá–lo. Ele era. Meditem sobre isto, senhores, e se convencerão de que ser nãoimplica de modo algum a substância e significa somente o liame do atributo ao sujeito; exprime apenas uma relação. 

– Sem dúvida – disse João Marteau – mas sei sem atributos equivale a não ser. Não me lembra quem foique disse outrora: – "Eu sou aquele que é." Perdoe a falha de minha memória. Não é possível a gente lembrar–se de tudo. Mas o desconhecido que assim falou cometeu uma rara imprudência. Dando a entender, por essa afirmação irrefletida, que era desprovido de atributos e privado de todas as relações, ele proclamou que não existia e suprimiu–se a si próprio, inconsideravelmente. Aposto que ninguém ouviu mais falar dele. 

– Perdeu a aposta – replicou o Sr. Bergeret. – Ele corrigiu o mau efeito daquela frase egoísta aplicando asi mesmo cargas de adjetivos, e falou–se muito dele, as mais das vezes sem nenhum bom senso. 

– Não compreendo – afirmou o Sr. Goubin. 

– Não é necessário compreender – respondeu João Marteau. 

E pediu ao Sr. Bergeret que falasse de Putois. 

– O senhor mostra–se muito amável fazendo–me este pedido – disse o mestre. 

"Putois nasceu na segunda metade do século XIX, em Santo Omer. Antes houvesse nascido alguns séculos atrás na floresta das Arderias ou na floresta de Brocéliande. Teria sido, então, um mau espírito de singular finura.” 

– Uma xícara de chá, Sr. Goubin – disse Paulina. 

– Então Putois era um mau espírito? – quis saber João Marteau. 

– Ele era mau – retorquiu o Sr. Bergeret – era–o de certo modo, mas não o era de maneira absoluta. Dá–se com ele o que se dá com os diabos que se diz serem muito malignos, porém nos quais descobrimos boas qualidades quando com eles privamos. E sinto–me inclinado a crer que se faz injustiça a Putois. A Sr.ª Cornouiller, que, prevenida contra ele, passara logo a imaginá–lo um indolente, um bêbedo e um ladrão, refletiu que, se minha mãe lhe dava trabalho, ela que não era rica, era porque ele se contentava com pouco, e logo pensou se não seria vantajoso substituir por ele o seu jardineiro, que tinha melhor renome, porém mais exigências. Estava começando a época de podar os teixos. Considerou que, se a Sr.ª Elói Bergeret, que era pobre, não dava grande coisa a Putois, ela, que era rica, daria menos ainda, pois é de praxe os ricos pagarem menos que os pobres. E já via os seus teixos talhados à feição de muralhas, de bolas e pirâmides, sem que ela com isso tivesse grande despesa. – "Ficarei atenta – disse consigo – para que Putois não mate tempo e não me roube. Nada arrisco e só terei vantagem. Às vezes esses vagabundos trabalham com mais habilidade que os operários decentes." Decidindo–se a fazer a experiência, falou a minha mãe: – "Filhinha, mande–me Putois. Eu lhe darei trabalho em Monplaisir." Minha mãe disse que sim, e cumpriria a promessa com muito gosto. Mas verdadeiramente não era possível. A Sr.ª Cornouiller esperou Putois em Mon–plaisir, e esperou em vão. Era obstinada nas suas idéias e constante nos seus projetos. Quando tornou a ver min–ha mãe, queixou–se de não ter notícias de Putois: –"Filhinha, você não lhe disse que eu o estava esperando?" – "Disse, mas ele é estranho, esquisito..." – "Oh! conheço bem essa espécie de gente. Conheço de cor e salteado esse seu Putois. Porém não há operário tão maluco a ponto de não querer trabalhar em Monplaisir. Minha casa é conhecida, penso eu. Putois atenderá com presteza ao meu chamado, filhinha. Diga–me apenas onde ele mora; irei pessoalmente buscá–lo." Minha mãe respondeu–lhe que não sabia onde morava Putois, que ele não tinha domicílio, era um pobre–diabo, sem eira nem beira. – "Nunca mais o vi, senhora. Creio que anda escondido." Podia responder melhor? 

"Todavia, a Sr.ª Cornouiller não a escutou sem certa desconfiança; imaginou que minha mãe estivesse a seqüestrar Putois, subtraindo–o às procuras, no receio de perdê–lo ou de o tornar mais exigente. E julgou–a, decerto, excessivamente egoísta. Numerosos julgamentos aceitos pelo mundo inteiro, e que a história consagrou, são tão bem fundados quanto esse.” – E no entanto é verdade – disse Paulina. 

– Que é que é verdade? – perguntou Zoé, meio sonolenta. 

– Que os julgamentos da história muitas vezes são falsos. Recordo–me, papai, que tu disseste um dia: –"A Sr.ª Roland era bastante ingênua em apelar para a imparcial posteridade e não se capacitar de que, se os seus contemporâneos eram boas biscas, também a sua posteridade seria composta de boas biscas." 

– Paulina – perguntou severamente a Srta. Zoé que tem que ver a história de Putois com o que nos acabade dizer? 

– Tem muito, minha tia. 

– Não o percebo. 

O Sr. Bergeret, que não era inimigo das digressões, respondeu à filha: 

– Se todas as injustiças fossem afinal reparadas neste mundo, não se teria imaginado outro para essas reparações. Como queres que a posteridade julgue eqüidosamente todos os mortos? Como interrogá–los na sombra em que se refugiam? Desde que se pudesse ser justo para com eles, seriam esquecidos. Mas pode–se jamais ser justo? E que é a justiça? A Sr.ª Comouiller, pelo menos, viu–se obrigada a reconhecer, com o decorrer do tempo, que minha mãe não a enganava e que Putois era inencontrável. 

"No entanto, não desistiu de o descobrir. Perguntou a todos os parentes, amigos, vizinhos, criados, fornecedores, se conheciam Putois. Somente dois ou três responderam que nunca tinham ouvido falar nele. Na maior parte, acreditavam tê–lo visto. – "Esse nome não me é estranho – disse a cozinheira – mas não há jeito de ligar o nome à pessoa." –"Putois! conheço–o perfeitamente – afirmou o cantoneiro coçando a orelha mas não lhe sei dizer quem é." A informação mais precisa partiu do Sr. Blaise, recebedor do registro, que declarou haver encarregado Putois de cortar madeira em seu quintal, de 19 a 23 de outubro, no ano do Cometa. 

"Certa manhã, a Sr.ª Cornouiller entrou ofegante no gabinete de meu pai: – "Acabo de ver Putois." – "Ah!" – "Eu o vi." – "Viu mesmo?" – "Tenho certeza. Ele ia passando junto ao muro do Sr. Tenchant. 

Depois dobrou na Rua das Abadessas, caminhando depressa. Perdi–o de vista." – "Era realmente ele?" – "Sem dúvida alguma. Um homem de seus cinqüenta anos, magro, curvo, com um ar de vagabundo, uma blusa suja." – "Realmente – disse meu pai – essa descrição pode ajustar–se a Putois." – "O senhor está vendo! Aliás, eu o chamei. Gritei: – "Putois!" – e ele virou–se." – "É o meio que os investigadores empregam para se certificarem da identidade dos malfeitores de quem andam à procura." – "Se eu lhe dizia que era ele! Bem que eu soube descobrir o seu Putois! Pois lhe digo: é um homem de má aparência. O senhor e sua mulher foram muito imprudentes em empregá–lo em sua casa. Eu entendo bem de fisionomias, e, embora não o tenha visto senão de costas, juraria que é um ladrão, e talvez um assassino. Não tem dobras nas orelhas, e isto é um sinal que não engana." – "Ah! a senhora notou que ele não tem dobras nas orelhas?" – "Nada me escapa. Sr. Bergeret, se o senhor não quer ser assassinado, com sua mulher e seus filhos, não deixe mais Putois entrar em sua casa. Um conselho: mande substituir todas as fechaduras.” 

"Ora, alguns dias depois, aconteceu que roubaram três melões da horta da Sr.ª Cornouiller. Não tendo sido encontrado o ladrão, ela suspeitou de Putois. Os gendarmes foram chamados a Monplaisir, e suas averiguações confirmaram as suspeitas da Sr.ª Cornouiller. Bandos de larápios devastavam, por esse tempo, os jardins da região. Desta vez, porém, o roubo parecia praticado por um só indivíduo, e com habilidade singular. Nenhum vestígio de arrombamento, nenhum rasto na terra úmida. O ladrão não podia ser outro senão Putois. Era a opinião do subdelegado, que estava bem informado sobre Putois e se empenhava em deitar a mão a esse tipo. 

"O Diário de Santo Omer consagrou um artigo aos três melões da Sr.ª Cornouiller e estampou, de acordo com informações fornecidas na cidade, um retrato de Putois. Dizia o jornal: "Ele tem a fronte baixa, olhos garços, olhar fugidio, um pé–de–galinha nas fontes, as maçãs salientes, vermelhas e brilhantes. As orelhas não têm dobras. Magro, um tanto arqueado, aparentemente débil, é, na realidade, de uma força fora do comum: dobra facilmente uma moeda de cem soldos entre o indicador e o polegar.” 

"Era com justas razões, afirmava o jornal, que se lhe atribuía uma longa série de roubos levados a efeito com habilidade surpreendente. 

"Putois ocupava a atenção da cidade inteira. Um dia, soube–se que ele fora detido e aprisionado. Logo se reconheceu, no entanto, que o homem que fora preso como se fosse Putois era um negociante de almanaques chamado Rigobert. Como não se conseguisse apurar coisa alguma contra ele, soltaram–no ao cabo de quatorze meses de prisão preventiva. E Putois continuava inencontrável. A Sr.ª Cornouiller foi vítima de novo roubo, mais audacioso que o primeiro. Tiraram–lhe do aparador três colherinhas de prata. 

"Ela viu nisso o dedo de Putois, mandou pôr um cadeado na porta de seu quarto, e não dormiu mais." 



CAPÍTULO III 



Pelas dez horas da noite – Paulina já se recolhera – a Srta. Bergeret disse ao irmão: 

– Não te esqueças de contar como Putois seduziu a cozinheira da Sr.ª Cornouiller. 

– Estava pensando nisso, minha irmã – respondeu o Sr. Bergeret. – Omiti–lo seria perder o melhor dahistória. Mas deve–se fazer tudo com ordem. Putois foi meticulosamente procurado pela justiça, que não o encontrou. Quando se soube que ele era inencontrável, cada um empenhou o seu amor–próprio em encontrá–lo; as pessoas astutas alcançaram êxito nessa empresa. E, como havia muitas pessoas astutas em Santo Omer e pelos arredores, Putois era visto ao mesmo tempo nas ruas, nos campos e nos bosques. Assim, foi acrescentado um traço ao seu caráter. Concederam–lhe esse dom de ubiqüidade próprio de tantos heróis populares. Um ser capaz de percorrer num momento longas distâncias, e que de repente se mostra no lugar onde menos era esperado, naturalmente causa espanto. Putois foi o terror de Santo Omer. A Sr.ª Cornouiller, persuadida de que Putois lhe roubara três melões e três colherinhas, vivia cheia de susto, entrincheirada em Monplaisir. Os ferrolhos, as grades e as fechaduras não lhe davam segurança. Para ela, Putois era um ser espantosamente sutil, que atravessava as portas. Um incidente doméstico veio redobrar–lhe o terror. Sua cozinheira fora seduzida, e chegou um momento em que já não pôde ocultar o seu erro. Porém recusou–se obstinadamente a declarar o nome do sedutor. 

– Ela chamava–se Gudule – disse a Srta. Zoé. 

– Chamava–se Gudule, e julgavam–na protegida contra os perigos do amor por uma barba que tinha noqueixo, longa e bifurcada. Uma barba repentina protegeu a virgindade daquela santa filha de rei que Praga venera. Uma barba que já não era adolescente não bastou para defender a virtude de Gudule. A Sra. Cornouiller fez tudo para que Gudule designasse o homem que, tendo abusado dela, a deixava depois em situação difícil. Gudule derretia–se em pranto e guardava silêncio. Preces, ameaças, não surtiram nenhum efeito. A Sr.ª Cornouiller procedeu a longo e minucioso inquérito. Interrogou habilmente os vizinhos, vizinhas e fornecedores, o jardineiro, o cantoneiro, os gendarmes; nada que a pusesse na pista do culpado. Tentou novamente obter de Gudule confissões completas: – "No seu próprio interesse, Gudule, diga–me quem é." Gudule continuava muda. Súbito, um raio de luz atravessou o espírito da Sr.ª Cornouiller: – "É Putois!" A cozinheira chorou e não respondeu. – "É Putois! Como é que não adivinhei logo? É Putois! Coitada! coitada! coitada!" 

"E a Sr.ª Cornouiller ficou persuadida de que Putois fizera um filho em sua cozinheira. Toda a gente em Santo Omer, desde o presidente do Tribunal até o cãozinho do acendedor de lampiões, conhecia Gudule e sua cesta. À notícia de que Putois seduzira Gudule, a cidade encheu–se de surpresa, admiração e alegria. Putois foi celebrado como autor de grandes façanhas e o namorado das onze mil virgens. Atribuíram–lhe, em face de indícios frívolos, a paternidade de cinco ou seis outras crianças que vieram ao mundo naquele ano, e que antes não tivessem vindo, para o prazer que as esperava aqui e a alegria que davam a suas mães. Apontavam–se, entre outras, a criada do Sr. Marechal, dono do botequim Ao Ponto de Reunião dos Pescadores, uma entregadora de pão e a corcundinha do Pont–Biquet, as quais, por haverem escutado Putois, tinham sido acrescidas de um bebê. – "Que monstro!" – exclamavam as comadres. 

"E Putois, invisível sátiro, ameaçava de irreparáveis acidentes todas as jovens de uma cidade onde, segundo os velhos, as moças sempre haviam sido sossegadas. 

"Assim difundido pela cidade e pelas vizinhanças, continuava ele preso à nossa casa por mil vínculos. sutis. Passava–nos diante da porta, e acreditava–se que por vezes escalava o muro do nosso jardim. Nunca o viam de frente. Mas a todo instante lhe reconhecíamos a sombra, a voz, os vestígios dos passos. 

Mais de uma vez julgamos vê–lo de costas, ao lusco–fusco, na esquina de uma rua. Comigo e minha irmã, ele mudava um pouco de aspecto. Continuava mau e nocivo, mas tornava–se pueril e muito ingênuo. Fazia–se menos real e, ouso dizê–lo, mais poético. Entrava no singelo ciclo das tradições infantis. Transformava–se no Papão, no Pai Fouettard e no vendedor de areia que fecha, ao anoitecer, os olhos das crianças. Não era esse duende que emaranha, pela noite, na estrebaria, a cauda dos potros. Menos rústico e menos encantador, mas igualmente travesso e cândido, fazia bigodes de tinta nas bonecas de minha irmã. Na cama, antes de adormecer, o escutávamos: ele miava nos tetos com os gatos, latia com os cães, enchia de gemidos as chaminés das lareiras e imitava na rua os cantos dos bêbedos retardatários. 

"O que nos tornava Putois presente e familiar, o que nele nos interessava, era que a sua lembrança estava associada a todos os objetos que nos rodeavam. As bonecas de Zoé, os meus cadernos de estudante, cujas páginas ele tantas vezes baralhara e garatujara, o muro do jardim sobre o qual nós tínhamos visto brilhar, na sombra, os seus olhos vermelhos, o vaso de faiança azul que numa noite de inverno ele partira, a menos que fosse a geada; as árvores, as ruas, os bancos, tudo nos lembrava Putois, o nosso Putois, o Putois dos meninos, um ser local e mítico. Ele não igualava, em graça e em poesia, o mais bronco egipã, o fauno mais grosseiro da Sicília ou da Tessália. Mas, ainda assim, era um semideus. 

"Para nosso pai, ele possuía um caráter bem diverso: era emblemático e filosófico. Nosso pai tinha grande piedade dos homens. Não os acreditava muito racionais: os erros humanos, quando não eram cruéis, divertiam–no e faziam–no sorrir. A crença em Putois interessava–o como um resumo e compêndio de todas as crenças humanas. Irônico e zombeteiro, falava de Putois como de um ente real. E fazia–o por vezes com tal insistência, e frisava as circunstâncias com tal exatidão, que minha mãe, tomada de surpresa, lhe dizia cheia de candura: –"Até parece que você fala a sério, homem: no entanto, bem sabe...” 

"Ele respondia gravemente: – "Toda Santo Omer acredita na existência de Putois. Seria eu um bom cidadão se a negasse? A gente deve pensar duas vezes antes de suprimir um artigo de fé comum.” 

"Só um espírito absolutamente honesto possui semelhantes escrúpulos. No fundo, meu pai era gassendista. Harmonizava o seu sentimento particular com o senti–mento público, crendo, como a gente de Santo Omer, na existência de Putois, mas não admitindo sua intervenção direta no roubo dos melões e na sedução das cozinheiras. Em suma: como bom filho de Santo Omer, ele professava a crença na existência de um Putois, e dispensava Putois para explicar os acontecimentos que ocorriam na cidade. De maneira que, neste ponto como em outro qualquer, foi ele um cavalheiro e um homem de espírito firme. 

"Quanto a nossa mãe, censurava–se um pouco a si mesma pelo nascimento de Putois, e não sem motivo. Porque, ao cabo de contas, Putois nascera de uma mentira de nossa mãe, como Calibã da mentira do poeta. Sem dúvida as culpas não eram iguais, e minha mãe era mais inocente que Shakespeare. No entanto ela vi–via espantada e confusa de ver sua mentira tão peque–nina crescer desmesuradamente, e sua leve impostura alcançar tão prodigioso êxito, êxito que não parava, que se estendia sobre uma cidade inteira e ameaçava estender–se sobre o mundo. Um dia ela até empalideceu, julgando que ia ver sua própria mentira erguer–se diante dela. Nesse dia, uma sua criada, nova na casa e na região, veio dizer–lhe que um homem desejava vê–Ia, dizia ter necessidade de falar–lhe. – "Que homem é es–se?" – "Um homem de blusa. Tem o jeito de um trabalhador do campo." – "Ele disse o nome?" – "Sim, senhora." – "Então! como se chama?" – "Putois." –"Ele disse que se chamava?..." – "Putois, sim, senhora." – "Ele está aqui?..." – "Sim, senhora. Está esperando na cozinha." – "Você o viu?" – "Sim, senhora." – "Que é que ele deseja?" – "Ele não me disse. Só quer dizer à senhora." – "Vá saber o que ele quer.” 

"Quando a criada tornou à cozinha, Putois já não se achava lá. Esse encontro da criada forasteira e de Putois nunca ficou esclarecido. Mas eu creio que desde aquele dia minha mãe começou a crer que Putois podia perfeitamente existir, e que era perfeitamente possível que ela não tivesse mentido." 



(As sete esposas de Barba-Azul e outros contos fabulosos; tradução de João Guilherme Linke) 



(Ilustração: Érika Cardoso - o mago)