quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

MIGUILIM E SEU IRMÃO DITINHO, de Guimarães Rosa






Mas no meio do dia o mico-estrela fugiu, correu arrepulando pelas moitas de carquejo, trepou no cajueiro, pois antes de trepar ainda caçou maldade de correr atrás da perua, queria puxar o rabo dela. Todo mundo perseguiu ligeiro pra pegar, a cachorrada latindo, Vovó Izidra gritava que os meninos estavam severgonhados, Mãe gritava que a gente esperasse, que a Rosa sozinha pegava, Drelina gritava que deixassem o bichinho sonhim ganhar a liberdade do mato que ela dele, o Papaco-o-Paco gritava: “Mãe, olha a Chica me beliscando! Ai, ai, ai, Pai, a Chica puxou meu cabelo!...” – era copiadinho o choro do Tomezinho. A gente tinha de fazer diligência, são já estava em d’os cachorros espatifarem o pobre do mico. Não se pegou: ele mesmo, sozinho por si, quis voltar para a cabacinha. Mas foi aí que o Dito pisou sem ver num caco de pote, cortou o pé: na cova-do-pé, um talho enorme, descia de um lado, cortava por baixo, subia da outra banda. 

- “Meu-deus-do-céu, Dito!” Miguilim ficava tonto de ver tanto sangue. “- Chama Mãe! Chama Mãe!” – o Dito pedia. A Rosa carregou o Dito, lavaram o pé dele na bacia, a água ficava vermelha só sangue, Vovó Izidra espremia no corte talo de bálsamo da horta, depois puderam amarrar um pano em cima de outro, muitos panos, apertados; ainda a gente sossegou, todo o mundo bebeu um gole d’água, que a Rosa trouxe, beberam num copo. O Dito pediu para não ficar na cama, armaram a rede para ele no alpendre. 

Miguilim queria ficar sempre perto, mas o Dito mandava ele fosse saber todas as coisas que estavam acontecendo. – “Vai ver como é que o mico está.” O mico estava em pé na cabacinha, comendo arroz, que a Roa dava. – “Quando o vaqueiro Saluz chegar, pergunta se é hoje que a vaca Bigorna vai dar cria.” “- Miguilim, escuta o que Vovó Izidra conversar com a Rosa, do vaqueiro Jé mais a Maria Pretinha”. O Dito gostava de ter notícia de todas as vacas, de todos os camaradas que estavam trabalhando nas outras roças, enxadeiros que meavam. Requeria se algum bicho tinha vindo estragar as plantações, de que altura que o milho estava crescendo. – “Vovó Izidra, a senhora já vai fazer o presépio?” “- Daqui a três dias, Dito, eu começo.” O Dito não podia caminhar, só podia pulando num pé só, mas doía, porque o corte tinha apostemado muito, criando matéria. Chamando, Gigão vinha, vigiava a rede, olhava, olhava, sacudia as orelhas. – “Você está danado, Dito, por causa?” “- Estou não, seo Lusaltino, costumei muito com essas coisas...” “- Depressa que sare!” “- Uê, p’ra se sarar basta estar doente.” 

Meu-deus-do-céu, e o Dito já estava mesmo quase bom, só que tornou outra vez a endefluxar, e de repente ele mais adoeceu muito, começou a chorar – estava sentindo dor nas costas e dor na cabeça tão forte, dizia que estavam enfiando um ferro na cabecinha dele. Tanto gemia e exclamava, enchia a casa de sofrimento. Aí Luisaltino montou a cavalo, ia daí a mais de um de viagem, aonde tinha um fazendeiro que vendia, buscar remédio para tanta dor. Vovó Izidra fez um pano molhado, com folhas-santas amassadas, amarrou na cabeça dele. – “Vamos rezar, vamos rezar!” – Vovó Izidra chamava, nunca ela tinha estado tão sem sossego assim. Decidiram dar ao Dito um gole d’água com cachaça. Mas ele tinha febre muito quente, vomitava tudo, nem sabia quando estava vomitando. Vovó Izidra veio dormir no quarto, levaram a caminha do Tomezinho para o quarto de Luisaltino. Mas Miguilim pediu que queria ficar, puseram uma esteira no chão, para ele, porque o Dito tinha de caber sozinho no catre. O Dito gemia, e a gente ouvia o barulhinho da Vovó Izidra repassando as contas do terço. 

No outro dia, o Dito estava melhorando. Só que tinha soluço, queira beber água-com-açúcar. Miguilim ficava sentado no chão, perto dele. Vovó Izidra tinha de principiar o presépio, o Dito não podia ver quando ela ia tirar os bichos do guardado na canastra – boi, leão elefante, águia, urso, camelo, pavão – toda qualidade bichos que nem tinha deles ali no Mutum nem nos Gerais, e Nossa Senhora, São José, os Três Reis e os Pastores, os soldados, o trem-de-ferro, a Estrela, o Menino Jesus. Vovó Izidra vez em quando trazia uma coisa ou outra para mostrar ao Dito: os panos, que ela endurecia com grude – moía carvão e vidro, e malacacheta, polvilhava no grude. Mas Dito queria tanto poder ver quando ela estava armando o presépio, forrando os tocos e caixotes com aqueles panos – fazia as serras, formava a Gruta. Os panos pintados com anil e tinta amarela de pacari, misturados davam um verde bonito, produzido manchado, como todos os matos no rebroto. E tinha umas bolas grandes, brilhantes de muitas cores, e o arroz plantado numa lada e deixando nascer no escuro, para não ser verde e crescer todo amarelo descorado. Tinha a lagoa, de água num prato-fundo, com os patinhos e peixes, o urso-branco, uma rã de todo tamanho, o cágado, a foquinha bicuda. Quase a maior parte daquelas coisas Vovó Izidra possuía e carregava aonde ia, desde os tempos de sua mocidade. Depois de pronto, era pôr o Menino Jesus na Lapinha, na manjedoura, com a mãe o pai dele e o boizinho e o burro. E punha um abacaxi-maçã, que fazia o presépio cheirar bonito. Todos os anos, o presépio era a coisa mais enriquecida, vinha gente estranha dos Gerais, para ver, de muitos redores. Mas agora o Dito não podia ir ajudar a arrumação, e então Miguilim gostava de não ir também, ficar sentado no chão perto da cama, mesmo quando o Dito tinha sono, o Dito agora queria dormir quase todo o tempo. 

A Chica e o Tomezinho podiam espiar armar o presépio o prazo que quisessem, mas eram tão bobinhos que pegavam inveja de Miguilim e o Dito não estarem vendo também. E então vinham, ficavam da porta do quarto, os dois mais o Bustica – aquele filho pequeno do vaqueiro Saluz. – “Vocês não podem ir ver presepe, vocês então vão para o inferno!” – isso a Chica tinha ensinado Tomezinho a dizer. E tinha ensinado o Bustica a fazer caretas. O Dito não se importava, até achava engraçado. Mas então Miguilim fez de conta que estava contando ao Dito uma estória – do Leão, do Tatu e da Foca. Aí Tomezinho, a Chica e aquele menino Bustica também vinham escutar, se esqueciam do presépio. E o Dito mesmo gostava, pedia: - “Conta mais, conta mais...” Miguilim contava, sem carecer de esforço, estórias compridas, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era o entendimento maior. Se lembrava de seo Aristeu. Fazer estórias, tudo com um viver limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, sabia: Deus mesmo era quem estava mandando! – “Dito, um dia eu vou tirar a estória mais linda, mais minha de todas: que é a com a Cuca Pingo-de-Ouro!...” O Dito tinha alegrias nos olhos; depois dormia, rindo simples, parecia que tinha de dormir a vida inteira. 

A Pinta-Amarela tirou os pintinhos, todos vivos, e no meio as três perdizinhas. A Rosa trouxe as três, em cima de uma peneira, para o Dito conhecer. Mas o Dito mandava Miguilim ir espiar, no quintal, e depois dizer para ele como que elas viviam de verdade. A dor-de-cabeça do Dito tinha voltado forte, mas agora Luisaltino tinha trazido as pastilhazinhas, ele engolia, com gole d’água, melhorava. – “Dito, as três perdizinhas são diabinhas! A galinha pensa que elas são filhas dela, mas parece que elas sabem que não são. Todo o tempo se assanham de querer correr para o bamburral, fogem do meio dos pintinhos irmãos. Mas a galinha larga os pintos, sai atrás delas, chamando, chamando, cisca para elas comerem os bichinhos da terra...” A febre era mais muita, testa do Dito quente que pelava. – “Miguilim, vou falar uma coisa, para segredo. Nem p’ra mim você não torna a falar.” O Dito sentava na cama, mas não podia ficar sentado com as pernas esticadas direito, as pernas só teimavam em ficar dobradas nos joelhos. Tudo endurecia, no corpo dele. – “Miguilim, espera, eu estou com a nuca tesa, não tenho cabeça pra abaixar...” De estar pior, o Dito quase não se queixava. 

- “Miguilim, Vovó Izidra toda hora está xingando Mãe, quando elas estão sem mais ninguém perto?” Miguilim não sabia, Miguilim quase nunca sabia as coisas das pessoas grandes. Mas o Dito, de repente pegava a fazer caretas sem querer, parecia que ia dar ataque. Miguilim chamava Vovó Izidra. Não era nada. Era só a cara da doença na carinha dele. 

Depois, a gente cavacava para tirar minhocas, dar para as perdizinhas. Mas o mico-estrela pegou as três, matou, foi uma pena, ele abriu as barriguinhas delas. Miguilim não contou ao Dito, por não entristecer. – “As perdizinhas estão assustadinhas, estão crescendo por demais... Amanhã é o dia de Natal, Dito!” “- Escuta, Miguilim, uma coisa você me perdoa? Eu tive inveja de você, porque o Papaco-o-Paco fala Miguilim me dá um beijim... e não aprendeu a falar meu nome...” O Dito estava com jeito: as pernas duras, dobradas nos joelhos, a cabeça dura na nuca, só para cima ele olhava. O pior era que o corte do pé ainda estava doente, mesmo pondo cataplasma doía muito demorado. Mas o papagaio tinha de aprender a falar o nome do Dito! – “Rosa, Rosa, você ensina o Papaco-o-Paco a chamar alto o nome do Dito?” “- Eu já pelejei, Miguilim, porque o Dito mesmo me pediu. Mas ele não quer falar, não fala nenhum, tem certos nomes assim eles teimam de não entender...” O Dito gostava de comer pipocas. A Rosa estava assando pipoca: para elas estalarem bem graúdas, a Rosa batia na tampa da caçarola com uma colher de ferro e pedia a todos para gritarem bastante, e a Rosa mesma gritava os nomes de toda pessoa que fosse linguaruda: “- Pipoca, estrala na boca de Siá Tonha do Tião! Estrala na boca de dona Jinuana, da Rita Papuxa!...” Miguilim vinha trazer as pipocas, saltantes, contava o que a Rosa tinha gritado, prometia que o Papaco-o-Paco já estava começando a soletrar o nome do Dito. O Dito gemia de mais dor, com os olhos fechados. – “Espera um pouco, Miguilim, eu quero escutar o berro dessas vacas...” Que estava berrando era vaca Acabrita. A vaca Dobradiça. A vaca Atucã. O berro comprido, de chamar bezerro. – “Miguilim, eu sempre tinha vontade de ser um fazendeiro muito bom, fazenda grande, tudo roça, tudo pastos, cheios de gado...” – “Mas você vai ser, Dito! Vai ter tudo...” O Dito olhava triste, sem desprezo, do jeito que a gente olha triste num espelho. – “Mas depois tudo quanto há cansa, no fim tudo cansa...” Miguilim discorreu que amanhã Vovó Izidra ia pôr o Menino Jesus na manjedoura. Despois, cada dia ela punha os Três Reis mais adiantados um pouco, no caminho da Lapinha, todo dia eles estavam um tanto mais perto – um Rei Branco, outro Rei Branco, o Rei Preto – no Dia de Reis eles todos três chegavam... “- Mas depois tudo cansa, Miguilim, tudo cansa...” E o Dito dormia sem adormecer, fica dormindo mesmo gemendo. 

Então, de repente, o Dito estava pior, foi aquela confusão de todos, quem não rezava chorava, todo mundo queria ajudar. Luisaltino tornou a selar cavalo, ia tocar de galope, para buscar seo Aristeo, seo Deográcias, trazer remédio de botica. Pai não ia trabalhar na roça, mais no meio dali resistia, com os olhos avermelhados. O Dito às vezes estava zarolho, sentido gritava alto com a dor-de-cabeça, sempre explicavam que a febre dele era mais forte, depois ele falava coisas variando, vomitava, não podia padecer luz nenhuma, e fica dormindo fundo, só no meio do dormir dava um grito repetido, feio, sem acordo de si. Miguilim desentendia de tudo, tonto tonto. Ele chorou em todas partes da casa. 

Veio seo Deográcias, avelhado e magro, dizia que o Patori não era ruim assim como todos pensavam, dizia que Deus para punir o mundo estava querendo acabar com todos os meninos. Veio seo Aristeu, dessa vez não brincava nem ria, abraçou muito Miguilim e falou, apontando para o Dito: - “Eu acho que ele é melhor do que nós... Nem as abelhinhas hoje não espanam asas, tarefazinha... Mas tristeza verdadeira, também nem não é prata, é ouro, Miguilim... Se se faz...” Veio seo Brízido Boi, que era padrinho do Tomezinho: um homem enorme, com as botas sujas de barro seco, ele chorava junto, aos arrancos, dizia que não podia ver ninguém sofrer. Veio a mãe do Grivo, com o Grivo, ela era quase velhinha, beijou a mão do Dito. E de repente veio vaqueiro Jé, com a Maria Pretinha, os dois tão vergonhosos, só olhavam para o chão. Mas ninguém não ralhou, até Pai disse que pelo que tinha havido eles precisavam nenhum de ir s’embora, ficavam aqui mesmo em casa os dois trabalhando; e Vovó Izidra disse que, quando viesse padre por perto, pelo direito se casavam. O vaqueiro Jé concordou, pegou a mão da Maria Pretinha, para chegarem na beira da cama do Dito, ele cuidava muito da Maria Pretinha, com aqueles carinhos, senhoroso. E então o povo todo acompanhou Vovó Izidra em frente do oratório, todos ajoelharam e rezavam chorando, pedindo a Deus a saúde que era do Dito. Só Mãe ficou ajoelhada na beira da cama, tomando conta do menino dela, dizia. 

A reza não esbarrava. Uma hora o Dito chamou Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho. Quase que ele não podia mais falar. – “Miguilim, e você não contou a estória da Cuca-Pingo-de-Ouro...” “- Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto demais dela, estes dias todos...” Como é que podia inventar a estória? Miguilim soluçava. – “Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha mesmo, ela há de me reconhecer...” “- No Céu, Dito? No Céu?!” – e Miguilim desengolia da garganta um desespero. – “Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com Mãe, é de você...” E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: - “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente não pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...” E o Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram Miguilim de lá. 

Miguilim doidava de não chorar mais e de correr por um socorro. Correu para o oratório e teve medo dos que ainda estavam rezando. Correu para o pátio, chorando no meio dos cachorros. Mãitina caminhava ao redor da casa, resmungando coisas na linguagem, ela também sentia pelo estado do Dito. – “Ele vai morrer, Mãitina?!” Ela pegou na mão dele, levou Miguilim, ele mesmo queria andar mais depressa, entraram no acrescente, lá onde ela dormia estava escuro, mas nunca deixava de ter aquele foguinho de cinzas que ela assoprava. – “Faz um feitiço para ele não morrer, Mãitina! Faz todos os feitiços, depressa, que você sabe...” Mas aí, no voo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava. Escutou os que choravam e exclamavam, lá dentro de casa. Correu outra vez, nem soluçava mais, só sem querer dava aqueles suspiros fundos. Drelina, branca como pedra de sal, vinha saindo: - “Miguilim, o Ditinho morreu...” 

Miguilim entrou, empurrando os outros: o que feito uma loucura ele naquele momento sentiu, parecia mais uma repentina esperança. O Dito, morto, era a mesma coisa que quando vivo, Miguilim pegou na mãozinha morta dele. Soluçava de engasgar, sentia as lágrimas quentes, maiores do que os olhos. Vovó Izidra o puxou, trouxe para fora do quarto. Miguilim sentou no chão, num canto, chorava, não queria esbarrar de chorar, nem podia. – “Dito! Dito!...” Então se levantou, veio de lá, mordia a boca de não chorar, para os outros o deixarem ficar no quarto. Estavam lavando o corpo do Dito, na bacia grande. Mãe segurava com jeito o pezinho machucado doente, como caso pudesse doer ainda no Dito, se o pé batesse na beira da bacia. O carinho da mão de Mãe segurando aquele pezinho do Dito era a coisa mais forte neste mundo. – “Olha os cabelos bonitos dele, o narizinho...” – Mãe soluçava. – “Como o pobre do meu filhinho era bonito...” Miguilim não aguentava ficar ali; foi para o quarto de Luisaltino, deitou na cama, tapou os ouvidos com as mãos e apertou os olhos no travesseiro – precisava de chorar, toda-a-vida, para não ficar sozinho. 



(Manuelzão e Miguilim



(Ilustração: Simone Matias)



domingo, 25 de fevereiro de 2018

RILKE SHAKE, de Angélica Freitas




 



salta um rilke shake

com amor & ovomaltine

quando passo a noite insone

e não há nada que ilumine

eu peço um rilke shake

e como um toasted Blake

sunny side pra cima

quando estou triste

& sozinha enquanto

o amor não cega

eu bebo um rilke shake

e roço um toasted Blake

na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake

no quesito anti-heartache

nada supera a batida

de um rilke com sorvete

por mais que você se deite

se deleite e se divirta

tem noites que a lua é fraca

as estrelas somem no piche

e aí quando não há cigarro

não há cerveja que preste

eu peço um rilke shake

engulo um toasted blake

e danço que nem dervixe





(Ilustração: William_Blake - Penseroso & L'Allegro)


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

NUMA NOITE DE VERÃO, de Ambrose Bierce







O fato de estar enterrado não parecia provar a Henry Armstrong que ele tivesse morrido: sempre fora um homem difícil de convencer. Que ele estivesse realmente enterrado o testemunho de seus sentidos o levava a admitir. Sua postura – deitado de costas, as mãos cruzadas sobre o estômago e atadas com alguma coisa que ele partiu facilmente, sem melhorar muito a situação –, o confinamento estrito de toda a sua pessoa, a escuridão negra e o silêncio profundo, tudo isso compunha um corpo de evidência impossível de contradizer; e ele o aceitava sem objeção.

Mas morto – não. Ele estava apenas muito, muito doente. E tinha, além disso, a apatia dos inválidos, sem se preocupar demais com o destino incomum que lhe fora reservado. Não era filósofo – apenas uma pessoa ordinária e rasa, dotada, naquele momento, de uma indiferença patológica: o órgão do qual temia consequências estava entorpecido. Assim, sem nenhuma apreensão particular quanto ao seu futuro imediato, dormiu, e tudo estava em paz com Henry Armstrong.

Mas alguma coisa se passava logo acima. Era uma noite escura de verão, rasgada por clarões ocasionais de relâmpagos que dardejavam contra uma nuvem baixa, a oeste, anunciando tempestade. Essas iluminações breves, balbuciantes, faziam aparecer, com nitidez espectral, os monumentos e as lápides do cemitério, tal como se os colocasse para dançar. Não era uma noite em que uma testemunha qualquer pudesse, de modo crível, perambular por ali, de modo que os três homens que lá apareceram, a cavar o túmulo de Henry Armstrong, se sentiam razoavelmente seguros.


*


Dois deles eram estudantes da faculdade de medicina, que ficava algumas milhas adiante. O terceiro era um negro gigantesco, chamado Jess. Por muitos anos, Jess tinha sido empregado no cemitério como uma espécie de faz-tudo, e era o seu bordão favorito dizer que conhecia “todas as almas do lugar”. Pela natureza do que estava a fazer agora, inferia-se que o lugar não era tão populoso quanto o registro o teria demonstrado.

Do lado de fora do muro, numa parte distanciada da estrada pública, estavam um cavalo e uma carroça a esperar.

O trabalho de escavação não era difícil: a terra com que o túmulo fora coberto poucas horas antes oferecia pouca resistência, sendo logo retirada. Remover o esquife de dentro do nicho foi menos fácil, mas não impossível, pois se tratava de uma habilidade de Jess, o qual desparafusou a tampa com cuidado e a colocou de lado, expondo o corpo com suas calças pretas e a camisa branca. Nesse exato instante o ar se inflamou, o estrondo ensurdecedor do trovão abalou o mundo, e Henry Armstrong se sentou tranquilamente. Com gritos inarticulados, os homens fugiram de pavor, cada um numa direção. Por nada no mundo dois deles teriam sido persuadidos a retornar. Mas Jess era de outra têmpera.


*


No lusco do amanhecer, os dois estudantes – pálidos e exaustos do terror e da ansiedade causados pela aventura precedente, que ainda latejavam tumultuários em seu sangue – se encontraram na faculdade de medicina.

– Você viu? – gritou um deles.

– Meu Deus, sim! Que vamos fazer?

Foram até os fundos do edifício, onde viram um cavalo atrelado a uma carroça e amarrado a um mourão junto à porta da sala de dissecação. Entraram mecanicamente no cômodo. Sentado num banco, oculto pela obscuridade, estava Jess. Levantou-se, sorrindo, todo olhos e dentes.

– Estou esperando pelo meu pagamento – disse.

Estendido nu sobre uma mesa comprida jazia o corpo de Henry Armstrong, a cabeça lambuzada pelo sangue e pela lama de uma pazada.



(Tradução de Renato Suttana)



(Ilustração: Theodore Géricault - Morgue-Based Preparatory Paintings for Raft of the Medusa)



segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

POEMA PORRADA, de Roberto Piva







Eu estou farto de muita coisa

não me transformarei em subúrbio

não serei uma válvula sonora

não serei paz

eu quero a destruição de tudo que é frágil:

cristãos fábricas palácios

juízes patrões e operários

uma noite destruída cobre os dois sexos

minha alma sapateia feito louca

um tiro de máuser atravessa o tímpano de

duas centopeias

o universo é cuspido pelo cu sangrento

de um Deus-Cadela

as vísceras se comovem

eu preciso dissipar o encanto do meu velho

esqueleto

eu preciso esquecer que existo

mariposas perfuram o céu de cimento

eu me entrincheiro no Arco-Íris

Ah voltar de novo à janela

perder o olhar nos telhados como

se fossem o Universo

o girassol de Oscar Wilde

entardece sobre os tetos

eu preciso partir um dia para muito longe

o mundo exterior tem pressa demais para mim

São Paulo e a Rússia não podem parar

quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim?

a morte olha-me da parede pelos olhos apodrecidos

de Modigliani

eu gostaria de incendiar os pentelhos de Modigliani

minha alma louca aponta para a Lua

vi os professores e seus cálculos discretos ocupando

o mundo do espírito

vi criancinhas vomitando nos radiadores

vi canetas dementes hortas tampas de privada

abro os olhos as nuvens tornam-se mais duras

trago o mundo na orelha como um brinco imenso

a loucura é um espelho na manhã de pássaros sem Fôlego.



(Paranoia)




(Ilustração:  Bernard Buffet (1928-1999), les oiseaux le rapace)


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A NOITE, A MORTE, A SOLIDÃO, O AMOR E A MADRUGADA, de Osman Lins






A lâmpada pendia do fio empoeirado, que desaparecia no alto, entre os caibros grossos, cujas ripas negras e grandes telhas vãs. Gélida, imóvel e ameaçadora. Um anteparo de cartão deixava meio quarto na penumbra. Na zona mais escura, hirto em sua cadeira de vime, Bernardo olhava a mulher e o berço de pinho. Fazia tempo que os dois estavam em silêncio, estremecendo de leve a cada movimento do menino. Quantas manhãs e tardes, pensava o homem, quantas noites duraria ainda o suplício? A sombra do anteparo envolvia Teresa e a criança, uma cadeira vazia, o berço, o toucador.

Nas ruas, a noite emudecera. Sob as aglaias, à sombra dos portões, ao pé das janelas meio fechadas, os namorados haveriam trocado seus adeuses. Com uns gestos cheios de torpor, sem alegria e como sem esperança, as famílias tinham recolhido as cadeiras dos passeios e era quase certo que todas as portas já estavam fechadas. As luzes amarelas dos postes, nas esquinas, iluminavam um mundo semimorto e quente.

O menino gemeu. Teresa estremeceu e curvou-se. O homem voltou o rosto. No fundo de seus olhos azuis houve um lampejo, um brilho intenso de tristeza e raiva. Que cena tão simples havia sido – lembrava. Tão mansa e tão dilacerante. Sua mãe não faria aquilo. Era mulher para levar três noites acordada, para esquecer de si e a ninguém abandonar na hora da aflição. Mas que existia agora, de tudo o que ela fora, de sua como que secreta e áspera, porém inabalável afeição? Que cena simples! “Agora, Teresa, ele está dormindo – tinha falado Suzana. E são horas, Ascânio vai deitar-se, tem aula amanhã. Qualquer coisa que houver...”. Nem ao menos acrescentara: “Chame-me.” Tocara de leve na fronte cada vez mais óssea de José, no ombro da filha e saíra do quarto, sem falar com ele, Bernardo, que por sua vez não levantara a cabeça. Ascânio demorara-se ainda um instante, de pé junto ao berço, fitando o companheiro de brinquedos, sobre quem se habituara a exercer uma vigilância cheia de cuidados. Mas a avó chamara-o autoritária, ele beijara Teresa, abraçara-a, beijara a mão de Bernardo, e saíra correndo. A porta da sala fora fechada. Teresa continuara sentada, sem dizer palavra, olhando para o rosto da criança.

Bernardo refletia: Agira erradamente? Era justa a atitude que assumira, tudo para obedecer a uma exigência íntima, convicção que ninguém – Teresa, sim – parecia entender? E seria que ela realmente a houvera aceito e compreendido? Dentro na alma, no coração? Decerto que um dia, mais cedo ou mais tarde, ele abandonaria o emprego, onde se sentia um pouco desprezível, e onde tinha a certeza de que seu coração murchava, definhava aos poucos, como um preso. Sim, um dia entregaria o lugar. Mas não naquela hora, não assim. Seria tão simples condescender, deixar o tempo passar! E fora tão insensato o que fizera! Se bem executava o seu trabalho, importava-lhe o resto? O certo era contar devidamente, como sempre fizera, os volumes conduzidos pelos caminhões, cobrar o imposto devido, prestar as devidas contas. Que Agripa Coutinho e seu tesoureiro, e seus secretários, fossem todos ladrões, dizia-lhe respeito? Não era ele que roubava o dinheiro arrecadado. E no entanto, se continuasse...

Levantou-se. Trancou a porta da sala, voltou ao quarto e ficou de pé por trás da mulher. Aquela espera, aquelas noites sem sono destruíam-na. Ele recordou com pesar a pacífica beleza que a envolvera sempre e que, até bem pouco tempo, parecia-lhe guardada, externa, imune às violências da vida. Mesmo agora, essa beleza como que pulsava, surdamente, no corpo castigado.

- Teresa...

Não houve resposta e tudo continuou em silêncio, a casa, as ruas desertas. Um homem passou cantando, foi embora, a voz e o rumor de seus passos se perderam. Ele pôs as mãos nos ombros de Teresa, que respirou fundo e, com um movimento súbito, agarrou-as. Bernardo sentiu, por baixo de suas mãos, o corpo da mulher estremecer, arfar e explodir em soluços.

- Teresa... – O menino, prostrado, parecia morto. – Isso não pode continuar assim.

Ela moveu a cabeça, num gesto que podia significar assentimento, impaciência ou temor. Ergueu-se, foi sentar-se na cama, sob a luz da lâmpada, lutando contra o pranto. Estendia as mãos, num gesto de perplexidade:

- Ele, ele... – repetia. Se fosse um de nós... Mas ele! Olhe para o rosto dele, veja o nosso filho.

- Nem tudo pode ser como a gente quer, Teresa.

- Nada tem sido como a gente quer.

O homem veio devagar, sentou-se pesadamente a seu lado.

- Eu sei. Tudo meu é assim.

Espaçaram-se os soluços, cessaram. Uma brisa que ninguém sentiu fez oscilar o duro fio da lâmpada. Ambos, ao mesmo tempo, souberam que a hora temida estava próxima, e deram-se as mãos.

- Não faz dois anos, foi a minha mãe. E agora... Ela estaria aqui. E também Suzana devia ter ficado...

- Foi melhor assim. O que vai acontecer é penitência nossa.

- Eu sei porque ela não ficou.

- Não vale a pena falar nisto, Bernardo. Não importa o que ela diga ou pense. Importa o que eu penso, o que eu sinto.

Ele se desprendeu, ficou de pé entre a penumbra e a claridade. Por que aquela lembrança, repentina e vívida? Por que aquela lembrança, enquanto o filho morria? Às noites de sexta-feira, até de madrugada e entrando pelo sábado, passavam caminhões para o Recife, carregados. Ele ficava na estrada, fazendo a cobrança das taxas municipais, metido num capote grosso, o parabellum escondido na cintura. Serviço ingrato. Mas então... Se a noite era limpa e se havia uma pausa no incessante passar de caminhões, ele ficava na ponte olhando a luz das estrelas sobre o rio e se lembrava das grandes noites antigas, de suas viagens passadas, ou com Antônio Chá, ou com Dominicano. Então prometia a si mesmo que um dia largaria aquele posto, meteria as alpercatas nas estradas, lavaria o sangue e os pulmões com ventos novos.

- Eu queria que você compreendesse.

- Não precisa explicar-me, Bernardo. 

- Mas eu tenho culpa. É preciso...

- Eu não quero saber se você tem culpa.

- Mesmo agora, se tivesse que decidir, eu fazia o mesmo. Apesar de tudo, fazia de novo o que fiz. Esse prefeito agora é um ladrão, Teresa. Eu posso ter errado, mas não estava em mim continuar. Outro qualquer ficava, lavava as mãos. – Sentou-se outra vez na cadeira de vime, que rangeu. – É o que todo mundo diz.

- Eu já disse que não era preciso explicar.

- Não tenho mais onde buscar dinheiro. Todos têm juízo, todos acham que eu pedi demissão porque quis e que ninguém tem nada com o que eu faço. Ninguém diz nada, mas eu sinto. Só mesmo sua mãe diz com franqueza o que pensa.

Ambos ficaram a olhar para o menino, fixo. A lâmpada imobilizara-se outra vez e pairava sobre o quarto. Inflexível. Ao longe, uma criança chorava e ainda mais distante, talvez na cadeia, um homem pôs-se a uivar como um demônio. Na sala ou na cozinha, um caibro gemeu. Bernardo cerrou os dentes, cruzou as mãos. Sem se voltar, feriu com brutalidade o núcleo ardente e oculto, em torno do qual, desde a véspera, giravam todos os seus atos e palavras:

- Nós estamos loucos. Esta miséria! Como foi possível a gente ficar de acordo numa decisão como aquela?

Teresa começo a murmurar, os lábios trêmulos:

- Nós ficamos, Bernardo, nós ficamos...

Parecia castigada, supliciada pela evocação do diálogo, aquele surdo, incrível diálogo, ao fim do qual – havendo concordado, por falta de meios, em nada mais fazer pela criança – ambos haviam como que ruído sobre o leito, exaustos, cada um para seu lado e receando tocar-se, os braços em cruz, os olhos nas telhas vãs.

- Deixá-lo morrer! – continuava o homem. Seremos dois monstros? Como é que você pôde concordar?

Ela se levantou, ficou de costas:

- Não fale mais, Bernardo. Eu sabia!

- Que é que você sabia?

- Você tinha de terminar acusando-me. Não me acuse – suplicou.

Ele escondeu o rosto nas mãos. Era a história de sempre -as traições da alma. E chegaria assim ao fim de sua vida, jamais se dominando por completo, sempre em luta com as partes odiosas de si mesmo, aquelas que fugiam, que acusavam, que condescendiam. A quem sobre a terra, a quem no mundo quisera proteger como a Teresa? A quem mais fortemente amara? E quem, mais do que ela, merecia a sua proteção, o seu querer, seu zelo?

- Teresa, eu não queria que você sofresse.

Ela moveu a cabeça tristemente:

- Eu sei. – Permanecia curvada sob o jorro vertical e como abrasador da lâmpada, os braços fortemente cruzados sobre o peito, os pés unidos na sombra. A claridade ocre se enredava, morria em seus cabelos apagados; mas a alvura do colo, apenas inclinado, refletia-a com uma espécie de doçura. – Eu sei.

O homem ergueu-se outra vez, mas não avançou um passo: ficou olhando o dorso da mulher, sem ousar tocá-la, até que ela se volveu penosamente e fitou-o. Aqueles olhos sempre calmos e agora tão desesperados, ardendo numa chama interna e sombria!

Mais uma vez chamou-a – e arrependeu-se, pois a sua voz desvelara no silêncio um círculo acerado, uma ausência ou uma presença, um peso. Que faltava na noite, que laço de esperança lhes fora retirado? Nas têmporas suaves da mulher, Bernardo via o sangue latejar. E de súbito, ela estremeceu, aproximou-se do berço, estendeu a mão. Bernardo chegou perto e se deteve, os punhos cerrados, colérico, olhando os finos dedos trêmulos, erguidos sobre a face tranquila da criança. Naquele instante, pensava, tinha início para ambos uma vida mais severa e mais sábia.

Teresa voltou-se, encontrou seus olhos, baixou a cabeça. Veio devagar, ergueu lentamente os braços e apertou-o de encontro a si. Não tocara o filho – mas sabia! E ali ficaram os dois, de olhos fechados, até que um duplo soluço trespassou-os e eles se abraçaram com mais força.

O anteparo na lâmpada, agora, resguardava o morto. Os galos cantaram nos quintais, silenciaram, voltaram a cantar. Madrugada alta, o homem na cadeia pôs-se novamente a uivar. Depois, as luzes da cidade se apagaram, veio confuso rumor dos passarinhos e uma claridade fresca desceu pelas frestas do telhado.



(O fiel e a pedra)



(Ilustração: Omer Charlet - Mère au chevet de son enfant mort)



terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

FIOS DE OVOS PRA VIAGEM, de Érica Zíngano








para a minha avó 





a minha avó morreu antes

de me ensinar a cozinhar

ela também não ensinou

a minha mãe a cozinhar

a minha mãe é canhota

e não tinha a menor chance

de dar certo na cozinha

dizia a minha avó

repetia a minha mãe

me explicando o porquê

de ter demorado tanto

pra aprender a cozinhar

(a minha mãe não se lamenta

da minha avó porque hoje

a minha mãe já sabe cozinhar

mesmo sendo canhota)

mesmo tendo morrido antes

de me ensinar a cozinhar

a minha avó uma vez tentou

me ensinar a cozinhar

quando eu tinha mais ou menos

oito anos de idade

foi um desastre completo

porque quando eu fui pegar

a chaleira quente com um pano

pra colocar água no arroz

o pano começou a pegar fogo

e fez um pequeno incêndio

na cozinha da minha avó

coisa que ela controlou muito

rápido porque estava ali

por perto administrando tudo

coisa que a minha avó fazia

muito bem era fios de ovos

todo natal tinha fios de ovos

com frutas cristalizadas no peru

pra tomar com sidra cereser

antes da ceia era uma festa

tenho sempre essa lembrança

dela fazendo fios de ovos

na cozinha infelizmente

a minha mãe não aprendeu

a fazer fios de ovos com a minha avó

nem a minha avó teve tempo

de me ensinar a fazer fios de ovos

que são a coisa mais difícil do mundo

de fazer então todo natal

eu sempre compro pronto

peço fios de ovos pra viagem

mas eles nunca têm o sabor

dos fios de ovos da minha avó

as saudades que eu tenho

da minha avó são as saudades

dos fios de ovos da minha avó

acho que o meu irmão tem saudades

diferentes da minha avó

mas nunca conversamos sobre isso




(Ilustração: Diego Velazquez)



sábado, 10 de fevereiro de 2018

A BRUXA DO BAIRRO ALTO DE S. ROQUE, António Manuel Venda





O século ainda ia novo mas a vida, que às idades não parecia ligar muito, já andava outra vez agitada por Lisboa. Ele era milagres de Santo António dia sim dia não, ele era as pessoas a falarem do anjo que alguém tinha avistado no alto da torre da igreja de Nossa Senhora da Graça, ele era ainda outras criaturas, talvez mandadas por Deus e observadas por quem jurava a pés juntos que não eram foliões mascarados. E o bispo inquisidor, enquanto tão grandes maravilhas eram relatadas, lá se ia entretendo a mandar queimar hereges e judeus, uns por coisas vistas, outros porque, bem vistas as coisas, não haveria no reino deles necessidade.

Tudo isto, que já não era pouco, ia acontecendo ao mesmo tempo que os castelhanos arranhavam por terra a toda a hora e os franceses picavam por mar de vez em quando. E para ajudar à festa, El-Rei Todo Poderoso, o quinto João com que o reino alombava, ainda se punha a morder dentro das próprias fronteiras com impostos tais que a riqueza de jóias e vestes que à corte se via nunca antes fora assim notada. Mas o povo não era tão desligado como deixava parecer a quem o observava das varandas reais, e por isso nem a desculpa do ouro de terras de Santa Cruz o convencia de que nesses altos enxovais não figurava moeda plebeia.

*

Os casos de admirar eram tantos que os novos logo abafavam outros já bem repisados. E conseguiam-no mais pela força que tinham do que pela falta dela nos anteriores, pois cada um que surgia deixava três ou quatro para trás em matéria de falatórios. Nunca se pensara que no reino pudessem vir a caber todos, mas eles iam cabendo, e isso era uma coisa que ninguém desmentia, tanto mais que Deus também não dava mostras de querer fazê-lo.

Foi por esses tempos que se começou a falar na Bruxa do Bairro Alto de S. Roque. Inês Duarte, que tinha sido o nome que ao baptismo lhe calhara, apareceu de repente aos olhos de todos como uma criatura destinada a tornar ainda mais notável aquele ano de mil setecentos e seis. Deu-se isso de forma tão espantosa que o bispo inquisidor se encarregou de a levar assim que o caso lhe chegou aos ouvidos. E decerto que não iria tardar muito a mandar queimá-la no Rossio, de bruxas e feiticeiros acompanhada, numa fogueira bem grande, que assim era ao gosto do povo, assim D. João aprovava, assim Deus não se opunha, tão-pouco o Diabo, que esse toda a gente dizia ser das chamas apreciador certo.

*

A bruxa saiu à rua só com a pele do corpo, despida de cima a baixo, ou de baixo acima. Ao povo tanto fazia a subir como a descer, que os olhos viam o mesmo e a nudez não mudava vista de uma maneira ou de outra. E na frente de todos a criatura fartou-se de com as mãos dar prazer ao corpo, enquanto perguntava bem alto se por perto havia alguns homens em jeito de a comerem. E houve muitos, pois a tarde já ia adiantada e andavam muitas almas na rua, como era preceito a uma hora assim na cidade toda. Contaram-se por sete os homens que se lhe atiraram e por muito mais do que essa conta os que com grande pena lugar não conseguiram, e o mulherio gritou impropérios tais à tão diferente Inês que mais diferente a fez ainda. E houve sangue da perda da virgindade, e houve quem dissesse que um bicho assim não podia ser virgem, e houve ainda opiniões de que sendo sete os machos não havia mulher que resistisse por mais de má vida que fosse.

Ao sangue não ligou o bispo inquisidor, pois esse só queria a bruxa, sangrada ou por sangrar, que não seria por muito sangue ter que a fogueira não iria apresentar boas chamas. Já as mulheres do Bairro Alto de S. Roque ligaram, e assim lavaram a rua e desinfectaram a casa de Inês, e também varreram os vidros partidos do espelho grande do quarto, não fosse algum habitante futuro picar os pés. Para picar já bastavam os franceses, que o levasse o Diabo para bem longe do reino e dos impérios de além-mar.

*

O que deixava o povo sem saber ao certo o que pensar era que Inês sempre fora uma rapariga recatada e amiga da vizinhança, tanto que dela nunca tinha havido queixas no Bairro Alto de S. Roque. Chegou a dizer-se em Lisboa que até Frei Geraldo, da Ordem Terceira dos Franciscanos, já andava metido a averiguar por conta própria o mal daquela alma. Disseram-se tantas coisas em Lisboa por esses tempos, que estavam para chegar algarvios do Algarve e nortenhos do Norte e também outros de outros lugares para verem a bruxa. Ou pelo menos a queima, já que depois do que a Frei Geraldo acontecera só os guardas do bispo inquisidor dela se aproximavam.

– A mulher-bruxa, ou bruxa-mulher, como queira Vossa Alteza, D. João, Nosso Rei e Senhor, atirou-se-me para cima toda nua, pois roupa não quer e se alguém lha dá rasga-a logo! E não parava de me gritar "Padre, sou sua, padre!"

E Frei Geraldo contou outras coisas ainda piores.

– De três guardas houve precisão para eu daquele tormento sair! E mesmo assim teve um deles que ficar por troca comigo, e depois foi encontrado por dez companheiros que acudiram à gritaria dele, com a roupa rasgada e à bruxa igual em nudez! E o que é certo é que se tratou de um caso de violação das grandes! Até as paredes haveriam de ser testemunhas se alguém tivesse artes para lhes dar voz!

*

Andavam todos tão ocupados a falarem do caso que nem estranhavam os ares do filho mais novo do ferreiro do Bairro de S. Roque, sempre metido pelos cantos e sem dizer palavra. Inês, para ele, não era bruxa e tão-pouco iria morrer na fogueira. Inês tinha ido para onde ele nem conseguia imaginar, se calhar definitivamente, e o mais certo era não voltar a vê-la nua como a vira no dia do aparecimento da bruxa ao povo e em tantas outras alturas das quais já perdera a conta.

Nesse dia, espreitando pelas frestas do telhado da casa de Inês, Crisanto viu-a sair da cama toda nua, como a bruxa tão igual a ela que até o povo fez confusão, e esse engano só ele compreendeu. Ficou de olhar suspenso enquanto ela se mirava ao espelho grande, do qual depois foram jogados os bocados. E viu-a duas vezes, no espelho uma de frente, de costas uma no quarto, e fortes foram as telhas que o impediram de à do quarto se atirar. Mas depois a respiração pareceu-lhe que lhe começava a faltar, pareceu-lhe que tudo dentro de si parava quando Inês se vestiu e mesmo assim continuou nua no espelho. Viu-a calada e vestida e que os movimentos dela não eram acompanhados pela imagem, e a seguir começaram a sair insultos de dentro do vidro.

*

– Estou bem cansada de te seguir, grande vaca! Comida nunca tive, que tu em frente do espelho não comes, homens nunca conheci, que tu nunca tiveste um só que fosse, muito menos em lugar espelhado!

Inês pegou num espelho pequeno que tinha à cabeceira, mirou-se e não se viu, e do grande veio de novo a voz que a fazia tremer.

– Estou farta de te seguir! Quero é sair daqui para fora, que ao fim de dezanove anos qualquer uma perde a paciência.

Depois a imagem calou-se e pôs-se a fazer caretas. E Inês, já em desespero, tentou dar-lhe um pontapé, mas a perna foi-se-lhe através do espelho e a imagem aproveitou para puxá-la toda e saltar para fora ao mesmo tempo. Ficou então em liberdade e logo partiu a prisão de Inês com uma cadeira que estava mais à mão e foi à cozinha encher a barriga com o que havia para comer. Fez cara de quem tinha gostado e saiu à rua na figura que deixou o povo de boca aberta. Chamou pelos homens, sete acudiram, e muitos mais tiveram pena de para eles não haver lugar. Pena não teve Crisanto, que à verdade toda assistiu e só desceu do telhado quando a noite chegou à cidade.



(Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade; 1996)




(Ilustração: Paul Delvaux - L'Appel de la Nuit)



quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

PAUPÉRIA REVISITADA, de Ricardo Aleixo









Putas, como os deuses,

vendem quando dão.

Poetas, não.

Policiais e pistoleiros

vendem segurança

(isto é, vingança

ou proteção).

Poetas se gabam

do limbo, do veto

do censor, do exílio, da vaia

e do dinheiro não).

Poesia é pão (para

o espírito, se diz) mas atenção:

o padeiro da esquina balofa

vive do que faz; o mais

fino poeta, não.

Poetas dão de graça

o ar de sua graça

(e ainda troçam

na companhia das traças

de tal "nobre condição").

Pastores e padres vendem

lotes no céu à prestação.

Políticos compram &

(se) vendem

na primeira ocasião.

Poetas (posto que vivem

de brisa) fazem do No, thanks

seu refrão.





(Máquina Zero)



(Ilustração: Diego Rivera – flowerseller)




domingo, 4 de fevereiro de 2018

DEMONIZAÇÃO DOS REVOLUCIONÁRIOS, de Dolf Oehler







A quem, entre aqueles que hoje cruzam a Place Saint-Michel, as figuras da fonte de mesmo nome, cercada de garrafas de cerveja e de Coca-Cola, têm ainda algo a dizer? Quem seria capaz de decifrar historicamente aquela alegoria para turistas, de reconhecer que o arcanjo de espada em punho, nos ombros de Satanás, devia representar na época a vitória da ordem imperial e burguesa sobre a revolução, o triunfo do bem sobre o povo do mal de junho de 1848?

Alguns contemporâneos conceberam as jornadas de junho de 1848, esse primeiro embate de vulto entre a república liberal e o proletariado insurrecto em Paris, como um genocídio social, uma tentativa sem precedentes de exterminar toda uma classe da sociedade. Em razão de sua monstruosidade, esse acontecimento logo foi presa do recalque, e com ele a literatura que, de uma forma ou de outra, quisera lhe dar voz.

“A revolução de junho proporciona o espetáculo de um combate encarniçado como nem Paris nem o mundo jamais viram”, escreve em 28 de junho de 1848 Friedrich Engels na Neue Rheinische Zeitung. Alexandre Dumas, redator e repórter de Le Mois, seu periódico “suprapartidário”, pensa que, comparados a esse combate, tanto a queda da Bastilha quanto o levante monarquista de 13 vendemiário de 1795, esmagado com sangue - é a primeira vez que se usam canhões em Paris -, foram meras brincadeiras de criança, o mesmo valendo para a revolução de julho de 1830 e a Revolução de fevereiro de 1848.

Os romancistas republicanos Erckmann-Chatrian julgam a batalha de junho “mil vezes mais terrível que a de Waterloo”, e Tomasi de Lampedusa apazigua o herói de seu Gattopardo, pouco antes de estourar a revolução siciliana, com a ideia de que todas as revoluções logo se transformam em comédias e que mesmo na França, “com ressalva do junho de 1848, no fundo nunca se deu nada de sério". Herzen, Baudelaire e Flaubert – e também Heine – não economizam superlativos; o significado peculiar que eles conferem às Journées de Juin ressuma do teor e da estrutura de seus próprios textos.

Em fevereiro de 1848, o povo e a burguesia haviam trocado olhares apaixonados. Depois de poucos meses, se não semanas, a atmosfera modificara-se, a percepção social mudara radicalmente: as antigas imagens do inimigo, tidas por superadas, emergiram novamente. Seu uso demagógico pela imprensa contribuiu para o desenrolar catastrófico da repressão, que por sua vez só fez confirmar vencedores e vencidos em seus fantasmas de classe. Desse modo, os acontecimentos de junho de 48 puderam reforçar perenemente um maniqueísmo social já existente na França.

A fórmula “novos bárbaros” aplicada ao proletariado remonta à primeira insurreição dos tecelões lioneses, de 1831. Le Constitutionnel e, com ele, todos os adversários dos insurgentes e dos socialistas advertem, em junho de 1848, com mais urgência do que nunca, sobre os “bárbaros do século XIX”, tomados como o perigo mais manifesto para a civilização. Quer se trate da Kölnische Zeitung ou de um órgão da grande burguesia como a Revue des Deux-Mondes (“Que requinte de barbárie!”), ou ainda do Frankfurter Journal (“esses atos refinados de barbárie selvagem cometidos pelos insurrectos”): qualquer um que teme pela ordem sente os trabalhadores, tão logo façam reivindicações e desçam às ruas para pleiteá-las, como bárbaros – ou age como se eles o fossem. A metáfora dos bárbaros impõe-se como por si mesma a inúmeros contemporâneos, e não só aos jornalistas:

Balzac fala do “longo duelo entre a barbárie da Mão parisiense e a civilização da Cabeça”. Lamartine batiza os insurrectos de “os Bárbaros da república”; Tocqueville, a partir de fevereiro, e Musset, somente em junho, sentem-se impelidos à lembrança dos “vândalos”; a elite intelectual e o burguês mediano recorrem, com espantosa prontidão, a fórmulas como essas ou à bestialização dos adversários sociais e ideológicos, a qual não é mais sentida, por assim dizer, como metafórica. Se em teoria o bárbaro ainda pode ser salvo, já que civilizável – quando ele surge em hordas, é claro, essa possibilidade diminui sensivelmente -, a besta é incorrigível em qualquer hipótese: o inimigo puro e simples, a natureza má, impermeável a motivos razoáveis, movida unicamente por “instintos” e “paixões doentias”. Um protótipo da época como Eugène Pelletan, partidário de Lamartine em 1848, expressa uma opinião corrente quando chama os trabalhadores “a classe tenebrosa que tem paixões e instintos, mas nunca ideias”, e ele não se acha só ao formular com tamanha franqueza a arrogância do burguês em junho.

A todo “cidadão honesto” impunham-se nos lábios e na pena tais referências animais, e isso sem prejuízo de seu grau de cultura; Mérimée, Musset ou Berlioz falam e escrevem com a mesma naturalidade, a propósito dos insurrectos, como de animais selvagens, cães raivosos, tigres, hienas, lobos e parasitas imundos, a exemplo dos escrevinhadores de segunda, dos romancistas de folhetim ou dos filisteus. Não há mais diferença digna de menção entre o que se diz privadamente e o discurso público. Berlioz vê a França como “uma floresta povoada de homens inquietos e lobos raivosos”, Mérimée pergunta a uma amiga se ela é capaz de compreender “esses enraivecidos” e logo arremata: “Eles aprendem do melodrama umas migalhas de heroísmo, e todos têm os mesmos instintos de animal feroz”. Em outra ocasião, ele elogia um amigo da província por ter atirado nos trabalhadores como se fossem coelhos de sua fazenda; depois, ele se rejubila novamente com as delações entre a população operária: “Sabeis que é um bom sinal quando os lobos se batem entre si”.

Não era nada incomum – e isso também foi dito do republicano Cavaignac – falar do povo como da “canalha” que devia ser fuzilada tão logo arreganhasse os dentes. Seria possível coligir volumes inteiros com tais citações, que não se restringem ao momento específico do junho de 48, mas pertencem ao repertório da retórica contrarrevolucionária e florescem especialmente nas situações de crise. Quanto mais os conflitos se agravam, menores são os escrúpulos, parece, em recorrer à bestialização do inimigo, o que explica por que, na história da França moderna, esse fenômeno nunca foi tão observado quanto na época da Revolução Francesa, no verão de 1848 e durante a Comuna de Paris. (Dessa perspectiva, também, o maio de 68 foi um eco remoto).

Para os partidários da ordem, todos os "vermelhos" sonham com um futuro irrealizável. Em junho, a associação do revolucionário ou socialista ao sonhador é um reflexo conservador; por exemplo, cite-se aqui o Le Contitutionnel de 24 de junho de 1848: "Os sonhos, as extravagâncias [...], as quimeras orgulhosas renderam os seus frutos". Entretanto, observadores moderados ainda distinguem os sonhadores inofensivos dos sonhadores perigosos, como por exemplo os socialistas utópicos, que querem realizar seus objetivos sem violência, e os blanquistas, que, "em outras épocas, teriam incitado uma noite de São Bartolomeu"; porém todos se inclinam a acusar os representantes da esquerda radical de serem os sonhadores que confundiram os sentidos dos bravos trabalhadores. Não raro essa censura prende-se à da perfídia diabólica, da barbárie, do delírio ou da bestialidade. Assim diz Hugo sobre o antes tão belo povo de fevereiro, corrompido pelas "más leituras": "Há os que alimentam não sei que tristes sonhos de pilhagem, de massacre e de incêndio", e acrescenta que os panfletistas tornaram selvagens os mesmos homens dos quais Napoleão teria transformado em heróis. E o tom de Hugo é o de toda a imprensa burguesa, o da literatura panegírica de junho dos Prarond-Le Vavasseur, de Boullaye, de Dügge, o das declarações privadas do mais obscuro filisteu de província, como aquele Vachez de Lyon, que numa carta emprega a expressão "veneno dos sonhos socialistas". 



(O Velho Mundo Desce aos Infernos; tradução de José Marcos Macedo.)



(Ilustração:  Saint Michel terrassant le dragon by Francisque Duret)



quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

DAYS / DIAS, de Ralph Waldo Emerson






Daughters of Time, the hypocritic Days.

Muffled and dumb like barefoot dervishes,

And marching single in an endless file,

Bring diadems and fagots in their hands.

To each they offer gifts after his will,

Bread, kingdoms, stars, or sky that holds them all.

I, in my pleached garden, watched the pomp,

Forgot my morning wishes, hastily

Took a few herbs and apples, and the Day

Turned and departed silent. I, too late,

Under her solemn fillet saw the scorn.




Tradução de José Lino Grünewald:



Prole do Tempo, Dias hipocríticos,

Tampados, mudos, dervixes descalços,

Seguindo sós em fila sem mais fim,

Com diademas e adornos nas mãos.

Oferecem regalos para todos,

Pão, reinos, astros e céu que os sustém.

Eu, em meu jardim curvo, olhava a pompa,

Esquecia os desejos matinais,

Na pressa, peguei ervas e maçãs,

E saiu e voltou, silente, o Dia.

Vi tarde, em seu solene aro, o desdém.




(Grandes Poetas da Língua Inglesa do século 19)




(Ilustração: Valquíria Cavalcante)